Aida Batista

Vidas bifurcadas

milenios tadium - portugal canadá

 

 

Todas as heranças são oportunidades para bifurcar o curso da nossa existência.

Patrick Poisson

 

 

A última edição do Milénio celebrou mais um ano da chegada oficial dos Portugueses ao Canadá, a 13 de maio de 1953. No próximo ano, perfaz-se uma data redonda – 70 anos – o que me faz debruçar sobre o fenómeno da emigração.

Quem percebe de agricultura, sabe que nem todos os produtos agrícolas podem ser transplantados. Há os que permanecem agarrados ao chão, onde deixam penetrar as raízes primeiras, e outros que facilmente se adaptam a diferentes solos e climas, desenvolvendo-se à revelia da matriz para que foram concebidos. Recorrendo a esta metáfora, podemos dizer que muitos dos emigrantes, arrancados que foram ao solo que os viu nascer, trouxeram, preso ao corpo, um pedaço de terra impregnado do código genético que souberam incorporar em terra alheia.

Condenados a verbalizar silêncios em malabarismos gestuais, depressa ultrapassaram a barreira da língua e se adaptaram aos brancos e longos lençóis de neve até estes começarem a namorar a primavera, criando quotidianos culturais plasmados naqueles que traziam.

Decorridos estes anos, a questão que se põe é perceber como se processou a integração. “Integrar” significa “fazer parte integrante de”. Do ponto de vista estritamente literal, todos, independentemente de terem ou não dupla nacionalidade, são parte integrante da sociedade canadiana, pela forma como souberam adaptar-se, mesmo quando tal não aconteceu de forma pacífica.

Ser membro de direito de um grupo radicado em terra estranha, obriga a resolver situações diárias de conflitualidade consigo próprio, ultrapassar resistências, absorver padrões de conduta que, à primeira vista, parecem incompatíveis, numa aprendizagem tanto mais célere quanto maior é o sonho de um futuro que se quer reinventado. Acima de tudo, fizeram-no sem terem eliminado o núcleo protoplasmático contido na membrana celular de que cada um é feito. Como num enxerto, transformaram a substância estranha e vivificaram-na em novas formas de estar, permanecendo autênticos no que isso possa conter de mais positivo ou negativo.
Primeiro a carta, depois o telefone, agora a internet, foram cabos que permitiram esta travessia de afetos que nos põem em contacto, apesar dos meridianos de mar que nos separam. Um mar que deixou de ser distância azul, mas antes útero primeiro que a todos envolve e “pelo qual respiramos”, como diria Jaime Cortesão.

Os primeiros momentos levaram à tomada de consciência da parábola dos vimes e da necessidade de se unirem, em função dos marcos geográficos que os definiam. Os continentais, por regiões; os ilhéus, pela vizinhança da mesma ilha. Se a matriz comum é ser-se português, a verdade é que o rojão é minhoto, a açorda alentejana e a alcatra terceirense.

Os cantares populares preencheram certidões de nascimento de corpos criados nos novos ancoradouros, mas balanceados pelas canções de antanho nos ranchos folclóricos. Acabada a refeição ou a atuação é vê-los comunicarem entre si numa outra língua, esquecidos dos momentos em que deram voz e vestiram o corpete duma ancestralidade que se mantém viva. As roupagens da língua são outras, mas a camisa que se cola à pele cheira ainda à esteva e ao rosmaninho em que se deitaram os seus avós.

Só assim se poderá entender a integração – o respeito mútuo pelos valores e referências de cada comunidade, como emanação de outra anteriormente constituída, fruto de uma experiência acumulada, como preconiza Manuela Aguiar: “Uma colaboração intercultural, sem perda nem dissolução do Mesmo ou do Outro”.

Penso que foi este o percurso feito no Canadá, em que se conseguiu um equilíbrio entre políticas de multicuralismo, delineadas e consagradas na Constituição, e o respeito pelo individualismo de cada grupo étnico.
Mais de meio século da história da integração da comunidade portuguesa no Canadá, atrevo-me a sublinhar o quanto tem sobrevivido ao longo do tempo e se mantém presente no quotidiano das suas vidas, mesmo quando novos ícones se lhe incorporaram, numa simbiose perfeita de tradição e inovação.

Aida Batista/MS

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