Aida Batista

A gramática dos sentidos

 

milenio stadium - aida batista

 

Ainda nos faltam seis meses para terminar o ano e já vamos com números assustadores de mulheres que morreram à mão dos seus maridos, companheiros ou namorados, simplesmente porque estes não aceitam os pedidos de divórcio ou o fim das suas relações. Os métodos utilizados para lhes tirarem a vida vão da arma branca à de fogo, na velha lógica de que “se não podes ser minha, não serás de mais ninguém”.

Tempos houve, contudo, em que a honra não se lavava à facada nem a tiro, mas em clínicas psiquiátricas e manicómios. Temos relatos de vários desses casos, mas destaco dois que, por se terem tornado particularmente conhecidos, mereceram a atenção da imprensa da época. Refiro-me à lisboeta Adelaide Coelho da Cunha e da micaelense Margarida Vitória Jácome Correia, mais conhecida pela Marquesinha por causa das suas origens aristocráticas. Porque tiveram coragem de romper com os códigos conservadores da sociedade, tal ousadia fê-las pagar um preço demasiado alto: prisão e internamentos forçados em manicómios e clínicas, onde o diagnóstico da loucura servia para justificar as transgressões de natureza moral.

Adelaide Coelho da Cunha, em novembro de 1918, aos 48 anos, um casamento de 28 anos com Alfredo Carneiro da Cunha e um filho de 26 anos, licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, troca um marido escritor e poeta por Manuel Claro, que fora seu motorista privado e tinha quase metade da sua idade. Este gesto representou não só uma troca de companheiro, mas também de todo o conforto do Palácio de S. Vicente, em Lisboa, por um modestíssimo andar em Santa Comba Dão, onde adotou o pseudónimo de Maria Romana. Descoberto o seu paradeiro, poucos dias depois, por instâncias do marido que tudo moveu para a localizarem, foi internada num manicómio, o Hospital Conde de Ferreira, no Porto, onde estavam outras filhas, esposas e irmãs de pessoas ilustres.

Foram as maiores figuras da psiquiatria da época – Júlio de Matos, Sobral Cid e Egas Moniz (o nosso Nobel da Medicina) – que, sem a observarem nem lhe fazerem qualquer exame, lhe diagnosticaram um estado de loucura, com o argumento do climatério, declarando-a “degenerada hereditária, na qual se vem manifestando em relação com a menopausa, graves perturbações dos afetos e dos instintos que a privam de capacidade civil para reger a sua pessoa e administrar os seus bens.” Por força deste estatuto, ficou privada de todos os seus bens, a que seguiu, depois, a interdição.

Margarida Victória, pela natureza das suas origens, cedo aprendeu a movimentar-se na alta sociedade e a partilhar o palco do mundo. No entanto, viu-se obrigada a seguir os padrões impostos por uma educação familiar muito conservadora, que colidia com o seu espírito alegre e muito rebelde. Para se poder libertar da tutela familiar, casou-se aos 18 anos, união desde o início condenada ao fracasso. Quando decide pedir o divórcio, é internada numa clínica psiquiátrica suíça, perto de Geneve. Declarada louca, é sujeita a choques elétricos e a uma vida de clausura, tão avessa ao seu espírito livre. A mãe, uma mulher fria e distante, iniciou um processo de interdição com o objetivo de a impedir de levar por diante o pedido de divórcio e ficar impedida de gerir os bens herdados por morte do pai.

Ficou delineada, de forma muito sumária, uma parte da biografia destas duas mulheres, que, apesar de terem contra si o facto de ambas serem adúlteras, conseguiram desafiar um tempo e uma sociedade em que a mulher não podia fazer as suas escolhas, nem tinha voz para se defender. Felizmente, e apesar de toda a jurisprudência estar contra elas, tanto uma como outra, como mulheres ilustradas e dotadas de força interior, souberam mover-se por entre os meandros da lei, valendo-se da imprensa para dar a conhecer os seus casos e fazer valer os seus direitos, atrevendo-se a conjugar o verbo amar em todos os tempos e modos da gramática dos sentidos.

Aida Batista/MS

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