Aida Batista

O lugar do morto

 

 

Ao fazer a mala, tenho de pensar em tudo o que lá vou meter para não me esquecer de nada.
Nuno Júdice
(o poeta que no último domingo nos deixou)

 

Uma amiga, sabendo do meu interesse sobre tudo quanto acontece no universo da e/imigração, ofereceu-me o livro “De outro lugar, vozes da emigração feminina”, da Editorial Canoa, publicado em 2023, com o apoio do Jornal de Toronto.

Trata-se de um conjunto de 26 narrativas de mulheres brasileiras, que, apesar de não se poderem incluir no género biográfico, constituem um importante conjunto de reflexões sobre o que para elas significou “emigrar”. Os textos selecionados são curtos, mas isso não lhes retira a profundidade do que é dito, num registo literário que, em alguns casos, se aproxima da prosa poética.

Depois de ter lido imensas histórias de vidas que passaram por processos migratórios, concluo que, independentemente da nacionalidade ou etnia, todas elas expressam fios comuns com que se tece a trama da emigração. O primeiro é sempre de natureza económica – a busca de uma vida melhor -, como nos diz uma das autoras: “O lugar que deixamos foi deixado porque impossibilitava algo que nos é muito essencial.”

Em dezembro passado, estive em Fafe, a convite do Presidente do Município (por sugestão do meu estimado amigo Daniel Bastos), para apresentar o meu último livro “As Bicicletas de Toronto”. Constando de um conjunto de crónicas, que resultam da colaboração semanal num jornal de Toronto – Milénio –, maioritariamente dirigido à Comunidade Portuguesa aí residente e arredores, o debate que se seguiu andou à volta de temas ligados à emigração.

Na assistência, estava um emigrante que conhecia detalhadamente casos da grande vaga “a salto” dos anos 60, para França.

Como o ambiente era bastante intimista, pudemos falar de temas que, habitualmente, não são abordados perante um público mais vasto. Um dos episódios tocou-me de tal modo, que tenho de o partilhar convosco, já que foi a primeira vez que ouvi falar deste assunto. Como sabemos, a maioria dos que naquela época emigravam, em caso de morte, ou o próprio em vida havia manifestado vontade de ser trasladado, ou a família tomava essa decisão, como se fosse um ritual de regresso ao chão matricial. Muitas famílias, porém, não tinham dinheiro suficiente para satisfazer a última vontade do defunto.

No entanto, havia na comunidade portuguesa um homem que fazia o papel de cangalheiro, que a nossa testemunha conhecera bem. Tinha um carro para esse efeito e com ele fazia as viagens até Portugal. Sentava o cadáver ao seu lado (por ironia, em Portugal dá-se a designação de “o lugar do morto), muito compostinho, como se se tratasse de um passageiro normal, de maneira que, quando tivesse de passar pelas autoridades fronteiriças, estas de nada desconfiassem. Bastava mostrar os documentos e assegurar que o seu companheiro caíra num sono profundo, não sendo necessário acordá-lo. E não mentia, admitamos, ele já dormia o sono eterno. Segundo a mesma testemunha, foram feitas várias viagens e durante vários anos. Claro que, perante uma situação tão insólita, não fiz mais perguntas, manifestando o meu mais profundo respeito pelas famílias que, em desespero, recorriam a esta prática.

Normalmente, estas pessoas eram provenientes de aldeias pequenas, profundamente religiosas, cuja fé exigia a missa de corpo presente. Presume-se, portanto, que podiam contar com a conivência misericordiosa do pároco local, perfeitamente justificável, considerando as razões em causa.

“Acredite que é verdade”, insistia o senhor, “foi assim que muitos puderam ser enterrados na sua terra.”

Volto ao livro por onde comecei esta crónica. Na emigração, diz-nos Isabel Arruda, “Ao meu ver, não estamos no mesmo barco, porém estamos todos nesse mesmo barco do recomeço.” Prosseguindo a linguagem náutica, eu acrescentaria que muitos ainda vivem como náufragos, à espera da onda que os devolva ao chão de onde partiram.

Aida Batista/MS

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