Onde o céu começa e o mar acaba
Onde a terra se acaba e o mar começa é a bruma, a ilha qu’o desejo tem. Afonso Lopes Vieira
Estive em Ponta Delgada a participar no congresso “Mulher, Género e Interseccionalidade no Mundo Lusófono”, organizado pela Associação dos Estudos Lusófonos da Universidade de York de Toronto, numa parceria com a Universidade dos Açores.
Regressei no passado domingo (3), deixando a ilha. Nada mais errado. Aquela danada não nos larga e viaja connosco presa ao corpo e à alma de todos nós, num sedutor jogo de escondidas, para que nenhum funcionário do controlo alfandegário dê por ela. Cúmplices, fingem que não a veem, pois é impossível não descobrir nos nossos olhos o reflexo dos recantos que visitámos; os cheiros da diversidade da flora colada à nossa pele; na planta dos pés, o calor que se foi desprendendo das pegadas que deixámos nas curtas caminhadas; a hora crepuscular espelhada na Lagoa das Furnas; o ruído do ventre da terra a borbulhar das caldeiras no silêncio da noite e a nobreza do basalto no porte com que atravessamos o detetor de metais.
Perguntam-nos se trazemos líquidos, e mostramos o saquinho de plástico que a força do hábito nos faz trazer à mão para mostrarmos as miniaturas com que passámos a viajar. Não passa de uma pergunta de rotina, porque fartinhos estão eles de saber que trazemos todo aquele mar a rodear-nos o corpo feito ilha, mesmo se condensado em forma de bruma a marcar cada passo da nossa despedida.
Também nos perguntam se trazemos computador, e pedem-nos que o coloquemos no tabuleiro do tapete rolante. Cumprimos a ordem, sabendo de antemão que só aquele simples retângulo pesa muito mais do que o que é permitido trazer na bagagem de cabine. Metemos lá todas as imagens que o nosso olhar conseguiu reter nas escapadinhas que os intervalos das sessões nos permitiram fazer: a criatividade dos desenhos das calçadas dos passeios; as paredes brancas bordejadas a negro das inúmeras igrejas e ermidas que se destacam altaneiras em todos os povoados; a luminosidade transparente de algumas das lagoas que conseguimos rever; os miradouros talhados a pique num desafio a quem sofre de vertigens; em alguns deles, o odor dos grelhados feitos nos merendários que recuperam a tradição dos piqueniques domingueiros; os novelões de hortênsias, que tanto podem ser jardins como vedações a estabelecer fronteiras entre pastos privados, onde as vacas caminham ou descansam da obrigação de nos fornecer o leite de que serão feitos os queijos de sabor único; a extensão das plantações de chá, fatiadas de verde em socalcos deitados; a chuva miudinha, que em visitas inesperadas nos fazem conhecer as quatro estações num só dia; as lapas, o peixe, a carne, os enchidos, o ananás, o inhame, a batata doce, servidos no prazer do reencontro de amigos, em convívios de memórias acompanhadas da sonoridade de muitas gargalhadas.
Nos ouvidos, os últimos sotaques da despedida envoltos em abraços bem açorianos – fortes e ternos – como diria a Natália Correia, que chamava aos do Continente “uns maricas.”
A juntar a tudo isto, vai ainda algo que, se fosse pesado, de imediato nos impediria de embarcar por excesso de bagagem – uma tremenda vontade de voltar, porque fica sempre tanto por ver e por voltar a ver. De tão pesada e volumosa, teria de ser despachada e levantada à parte, tal o tamanho que ganha na hora da partida por mais vezes que seja repartida.
O avião descola e atravessa a bruma que há bem pouco beijara a terra que havíamos pisado. Despeço-me do mar, daquele que só aqui tem um traço azul mais vincado a separar a linha do horizonte, como se quisesse definir bem onde o céu começa e o mar acaba.
Aida Batista/MS
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