A comunidade portuguesa de Toronto nos anos da sua formação
Recuar no tempo mais de 50 anos para vos relatar a minha chegada a este país não é um exercício fácil. Primeiro porque o Canadá, como o resto da América do Norte, vivia um período excepcional de efervescência económica, política e social. Em segundo porque, com 18 anos de idade, oito deles passados entre os muros dum seminário católico do século passado, eu era para todos os efeitos uma criança e a comunidade portuguesa um bebé que ainda gatinhava. Como diz a escritora britânica, Hilary Mantel, na sua obra Giving up the Ghost: “Writing about your past is like blundering through your house with the lights fused, a hand flailing for points of reference . There are obstacles to bump and trip you, but what is more disconcerting is a sudden empty space, where you can’t find a handhold and you know that you are stranded in the dark” .
Aqui vai então em mil palavras, o que recordo desse período, tentando não tropeçar demasiado nos obstáculos que serão inevitáveis. Cheguei a Toronto na década de 60, aquela que os historiadores consideram a mais explosiva do século XX. Foi na época dos protestos de rua, da revolução cultural, da guerra do Vietnam, da corrida espacial e de três assassinatos políticos: John Kennedy, Martin Luther King e Robert Kennedy. Os imigrantes portugueses, que oficialmente tinham chegado na década anterior, iniciavam a chamada das famílias e parentes, começando assim a estabelecerem-se nas grandes cidades como Montreal e Toronto.
Ao aterrar com passaporte de turista no aeroporto de Toronto, não senti a ansiedade ou o medo do desconhecido como seria normal a qualquer imigrante porque na verdade eu vinha para o colo da minha mãe, para o seio da família que me tinha deixado oito anos antes. Era mais assim como o filho pródigo a voltar a casa dos pais ou à vida familiar após um longo período, mas sem a vida extravagante, sem esbanjamentos e desperdícios. O meu pai viera em 57, labutou em muitas cidades e províncias canadianas até se estabelecer, meia dúzia de anos depois, em Toronto para poder chamar a minha mãe e os meus irmãos. A casa era na Crawford St., mesmo junto ao parque Bellwoods. Ainda lá está na parede à entrada o azulejo de Nossa Senhora dos Anjos ou será a Senhora da Agonia? Aqui tropeço um pouco na escuridão mas podem verificar, é o número 26! O Bellwoods Park era na altura frequentado essencialmente por famílias de origem italiana e polaca, assim como algumas pessoas idosas, nomeadamente veteranos das guerras que viviam em quartos alugados nas casas dos imigrantes e que lá em casa eram conhecidos como “os canadianos”.
O chamado coração da comunidade era, como é sabido, na área da Kensington Market, onde se estabeleceram as primeiras lojas portuguesas e para onde se dirigiam os homens imigrantes ao abandonarem as terras e locais de trabalho onde tinham sido colocados pelos funcionários da imigração canadiana. Quando cheguei, era para a rua Augusta que eu caminhava se quisesse encontrar um restaurante português ou comprar um jornal ou revista que uma, ou duas vezes por semana, chegavam pelas mãos do senhor Tomás “dos Jornais”. Do Portuguese Book Store, situado na Nassau e Augusta caminhava então alguns metros até ao Lisbon Plate, na Augusta, onde podia tomar o meu café enquanto lia as notícias “frescas” do nosso Portugal ou deambulava pelas ruas até à Spadina na esperança de encontrar algum compatriota na Barbearia Portuguesa do senhor Angelo Bacalhau ou a apreciar os sons e cheiros das coisas da nossa terra.
Lembro também o restaurante do Ramalho na Nassau St., mesmo em frente ao bookstore e na Augusta, a Casa Lisboa, a mercearia Lusitânia, a Casa da Madeira que vendia roupas com bordados e artigos regionais, o talho dum senhor Raposo, a modista senhora Lurdes, o alfaiate senhor Narciso, a Peixaria Sagres, o Talho Português e a Padaria Ibérica. Mesmo ao fundo, fazendo esquina com a College Street, a Agência de Viagens Império dum lado e do outro a Estação de Serviço ESSO do senhor Carvalho. A partir dos anos 60, com a reunificação familiar, o número de portugueses imigrantes aumentou de forma extraordinária, criando oportunidades para a expansão do comércio português e das associações comunitárias que tiveram um papel importantíssimo no desenvolvimento e integração da comunidades portuguesa de Toronto.
Quando celebrámos os 40 anos da chegada oficial para o Canadá, fui convidado pelo jornal Toronto Star para colaborar com um artigo sobre a comunidade portuguesa e que fazia parte dum projeto escrito sobre os vários grupos étnicos. Contribui a 10 de setembro de 1992 com um artigo a que dei o título “HERE TO STAY” e recordo vivamente querer transmitir à sociedade canadiana uma imagem positiva da sua integração e do sucesso alcançado neste seu país adotivo. Mas recordo também durante o processo da escrita sofrer um pouco para comunicar essa imagem ao ver tantas nuvens escuras no firmamento da nossa comunidade, cheias ainda de muitas lacunas e dificuldades.
Quase 70 anos após a abertura da imigração portuguesa para o Canadá, julgo que os netos e bisnetos dos primeiros imigrantes portugueses estão bem integrados na nova sociedade canadiana que eles próprios ajudaram a redefinir e a construir. Todavia, mesmo deixando de ter “um pé lá e outro cá” a luta continua. As batalhas são sempre diferentes, mas grandes novos desafios exigirão a mesma coragem e a tenacidade que os seus pais e avós demonstraram à chegada a estas paragens desconhecidas.
Domingos Marques/MS
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