Aida Batista

A festa das palavras

“A verdade é que a avó não sabia rir como velha, só como rapariguinha.” - Gabriel Baptista

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Foto da esquerda para a direita Cláudia Granada, Cristiana Almeida, Aida Batista, Aurora Santos. Cortesia de Ana Oliveira.

Acontece com todos nós: sempre que nos arranjamos para um determinado evento, tudo fazemos para levar a vestimenta adequada, de modo a não sobressairmos, nem destoarmos do conjunto. É certo que cada vez somos mais informais e menos exigentes na forma como nos apresentamos, mas isso não obsta a que nos sujeitemos a um conjunto de regras.

Tendo tido oportunidade de, pela primeira vez e em parceria com outra autora da mesma temática, apresentar a minha última publicação – Menina e Moça me Levaram – na 91ª edição da Feira do Livro de Lisboa, no passado dia 28 de agosto, abri o guarda-roupa para me decidir sobre o que havia de vestir. Era uma singela participação, mas, como caloira nestas andanças, o momento ganhava particular importância para mim.

Olhei para um vestido de linho verde, pendurado há mais de três anos num cabide, sem ter sido usado mais nenhuma vez. Sempre que tentava, não conseguia, porque o via cosido a uma trágica história. No final de uma tarde de maio, daquele verde vestida, recebi a fatídica notícia. Por decisão, que nenhum de nós consegue até hoje decifrar, decidiras voar, no verdadeiro sentido literal, atirando-te para a queda que te fez subir até à eternidade. E aquele vestido ficara para sempre ligado ao dia da tua partida, contrariando o senso comum que diz ser o verde a cor da esperança.

De telemóvel colado ao ouvido, e especada com a notícia, senti o verde transfomar-se no negro do luto. Tu escolheras um quispo azul, a cor celestial associada à paz, como se tivesses querido dizer-nos que finalmente a encontraras, matando de vez todos os teus conflitos interiores.

Um ímpeto, que não consegui controlar, levou-me a escolhê-lo. Naquela tarde, no Auditório Poente da Feira, precisava da tua presença. Sabia que, se estivesses cá, serias um dos que se sentaria orgulhoso na primeira fila. Criados sem livros e sem bibliotecas, o gosto pela palavra escrita sempre nos uniu. Por isso, eu tinha a certeza de que estavas ali, partilhando comigo a alegria de estarmos num espaço ocupado por milhares de livros, desde o topo do Parque Eduardo VII até à rotunda do Marquês de Pombal.

Eras um irmão que tinha a arte nas veias e um apurado sentido estético, plasmado nas remodelações das casas que restauravas, no olhar com que descobrias beleza nos mais insignificantes recantos da natureza ou na forma como lidavas com as palavras. Chegaste a escrever dois livros, de cariz autobiográfico e arquivados no meu computador, mas nunca fizeste nenhuma tentativa de os publicar. Talvez fosse mais importante para ti o jogo lúdico, solitário e cúmplice com as palvras, do que o fim último de as ver folheadas por mãos alheias a violar a tua intimidade.

Quando organizei, em parceria com uma amiga, a antologia “Passos de Nossos Avós”, ainda consegui que me facultasses um belo texto dedicado à nossa avó paterna, Catarina, “Riso Escangalhado de Menina”, resgatando-a da casa onde vivera e que tu sempre demonstraste vontade de um dia seres dono dela. Resta a esperança de que os teus filhos não sejam impedidos de cumprir o desejo que contigo levaste.

Concluída a cerimónia, o que de mais importante ficou não foi a satisfação de tudo ter corrido bem, de termos sabido gerir o tempo que nos estava destinado, ou a pequena vaidade (porquê negá-la?) de ter ocupado aquele palco durante meia-hora, mas a minha reconciliação com aquele vestido verde. Deixou de ser apenas uma indumentária, e ganhou o simbolismo da poesia, como as flores do verde pinho que D. Dinis invoca numa das suas cantigas. Ao refrão “Ai Deus e u é?” (Ai Deus, onde está?), eu responderia que estavas ali, a envolver-me num sentido abraço, por juntos celebrarmos a festa das palavras, apesar de tão jovem e moço teres sido levado.

Aida Batista/MS

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