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O lado negro da Igreja

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Para aqueles que acreditam e que seguem os princípios da religião católica, a Igreja é muitas vezes vista como um porto de abrigo – chega, na realidade, a ser até uma forma de cura, em muitos casos de problemas do foro mental ou de quem necessita de encontrar um (novo) rumo para a sua vida. No entanto, os resultados apresentados pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja (CIEAMI), liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, vieram abalar uma já “beliscada” imagem da Igreja e, consequentemente, o seu papel social.

O relatório final de um estudo que se prolongou durante um ano revelou uma assustadora realidade: 512 testemunhos confirmados de abusos sexuais no seio da Igreja em Portugal – destes, sete pessoas acabaram mesmo por se suicidar. No entanto, acredita-se que, no total, o número de casos de abusos ascenda, no mínimo, aos 4 815, desde 1950 até aos dias de hoje – prova de que a grande a maioria das vítimas continua em silêncio.
Daniel Sampaio, psiquiatra e membro da CIEAMI, não tem dúvidas que as comissões diocesanas falharam não só na deteção de alegados crimes contra menores, como permitiram que estes fossem ocultados sistemicamente.
Afinal, como o próprio afirma, “não há abuso sexual sem ocultação”. Daniel Sampaio defende ainda que “a ocultação foi ainda mais patente na Igreja pela dificuldade que a Igreja tem em ligar todos os temas da sexualidade, por exemplo”, acrescentando que “a questão do celibato é importante. No meu ponto de vista, era importante que se discutisse esse tema e que se ouvissem as vozes das mulheres na Igreja”. Não deixando de notar que “não é só a Igreja que oculta o abuso sexual”, Daniel Sampaio acredita que “a Igreja dificultou ainda mais a revelação do abuso sexual porque há crenças espirituais ligadas ao abuso sexual nas instituições religiosas”, onde “o padre, o frade ou a freira são investidos de um poder ligado a Deus, que lhes dá um extremo poder sobre a criança mais vulnerável e mais sozinha. Evidentemente, na família também há poder. Não há abuso sexual sem poder. Mas o facto de haver um poder divino torna ainda mais difícil a revelação do problema”.

“Continuamos a receber testemunhos, embora já tenhamos fechado o nosso telefone. Mas como o endereço de email permanece aberto, os testemunhos não cessam de chegar”, disse, numa entrevista. Uma das razões para a maior abertura das vítimas à denúncia, acredita Daniel Sampaio, ficou a dever-se ao facto de se tratar de uma comissão completamente independente: “as pessoas sentiram isso também pela credibilidade dos seus membros, porque éramos pessoas conhecidas e também pela seriedade do trabalho. Tivemos a capacidade de independência e de abertura ao exterior. As comissões diocesanas são estruturas da Igreja, é muito difícil uma vítima poder partilhar o seu sofrimento com uma estrutura que vê ligada à Igreja”.

Realçando que sentiu nos bispos “um certo afastamento deste problema, como se este problema nunca lhes tivesse passado pelas mãos” enquanto trabalhou neste estudo, Daniel Sampaio assume que, na sua opinião pessoal, “se fosse bispo e estivesse agora confrontado com esta situação em que eu tivesse tido uma ocultação importante de uma vítima, eu pediria a demissão. Pediria a resignação porque acho muito difícil um bispo, a partir de agora, continuar a fazer de conta que nada se passou”. Ainda assim, mesmo depois de divulgados os nomes de alegados abusadores, cerca de 100 continuam a exercer – quando questionado se espera que a Conferência Episcopal Portuguesa tenha a coragem de afastar bispos que comprovadamente encobriram padres abusadores, Daniel Sampaio é peremptório: “Tenho a certeza de que isso não vai acontecer”. Isto porque para além de ser “muito difícil provar que houve uma ocultação específica num caso”, “os bispos têm muito poder”. Mais ainda, diz não ter “grande esperança” de que um padre abusador seja condenado a uma severa pena de prisão.

O psiquatra considera ainda que “a Igreja podia ter feito mais” no que ao encorajamento a denúncias diz respeito, já que o estudo acabou por não conseguir chegar a várias camadas da população portuguesa: o apelo ao testemunho no final das missas, avança, teria sido uma enorme ajuda para possibilitar a comunicação com “uma população menos preparada do ponto de vista da literacia da Internet e mesmo de literacia em geral acerca das suas vidas”.

“Considero que este momento tem de ser um ponto de viragem para uma Igreja diferente, muito atenta ao problema dos abusos sexuais de menores por membros do clero, e com outra coisa bastante importante: a formação dos padres na área da sexualidade, que ainda é muito pouca”. A estes apelos, a Comissão juntou ainda uma outra proposta – que a Igreja assumisse o tratamento das vítimas identificadas. “A Igreja deveria protocolar com os Serviços de Psiquiatria do Serviço Nacional de Saúde o atendimento imediato e prioritário das vítimas. Sabemos que muitas estão em tratamento psicológico à sua custa e isso não me parece justo”, disse Daniel Sampaio ao jornal Milénio Stadium.

Já em relação aos abusadores, quando questionamos sobre se existe algum tipo de hipótese de quem o é deixar de o ser, o psiquiatra explicou que “o tratamento dos abusadores é longo e difícil, mas tem de ser feito. Necessitam de medicação e psicoterapia intensiva, porque são personalidades muito perturbadas. Se isso for feito, muitos – mas não todos – podem recuperar”.

Daniel Sampaio considerou ainda, em declarações à imprensa portuguesa, que “um dos erros da Igreja foi também pensar que o acompanhamento espiritual do abusador” é suficiente. “E nós temos casos em que o padre foi desviado para outra paróquia e foi acompanhado espiritualmente, e é importantíssimo, mas não chega. E temos de dizer, de uma forma muito clara, que os abusadores têm desvios da personalidade de uma enorme gravidade e que têm que ser tratados. Não podemos fugir disso. Não há nenhum abusador sexual que não tenha de ser tratado”.

Entretanto, com a realização das Jornadas Mundiais da Juventude – um evento de caráter religioso que nasceu em 1985 pelas mãos do Papa João Paulo II e que reúne, em cada uma das suas edições que vão tendo lugar em diferentes países ao longo dos anos, milhões de católicos de todo o mundo, na sua grande maioria jovens – é importante saber também se os resultados deste estudo poderão ter algum impacto nestas pessoas, cujo sofrimento foi acompanhado pelo Professor Daniel Sampaio. “Várias vítimas expressaram à Comissão Independente o desejo de serem recebidas pelo Papa. Esse é o impacto que desejariam. Pessoalmente gostaria que o tema fosse abordado nas Jornadas, de modo a que o assunto não fosse esquecido e pudesse haver uma ação preventiva junto dos jovens”, adiantou também ao nosso jornal.

Inês Barbosa/MS

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