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“O Ano Novo trará desafios acrescidos no plano da resiliência e sobrevivência” – Paula do Espírito Santo

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O começo de um novo ano é sinónimo de reflexão sobre o que estará para vir. E ainda que ao longo de 2022 tenhamos vindo a ser “avisados” que o futuro possa não ser assim tão risonho quanto gostaríamos, as variáveis estão em constante mudança e podem, inclusivamente, piorar aquilo que já se perspetivava mau.

Uma das grandes questões que permanece sem resposta é de quando terminará o conflito na Ucrânia. Para além disso, existe a questão da importância dos Estados Unidos, que se assumiram como grandes aliados nesta guerra, para a continuação da unificação da União Europeia que se tem verificado ao longo deste período em que a invasão russa se arrasta. Já em Portugal, uma série de demissões tem abalado o Governo.

São, portanto, muitas as perguntas que temos em relação ao que reserva este 2023 – para conseguirmos perceber melhor a situação mundial atual e o que podemos esperar dos próximos capítulos da história, contámos com o contributo de Paula do Espírito Santo, Professora Associada do ISCSP/CAPP/Universidade de Lisboa, que nos deu a sua visão sobre diversos acontecimentos pertinentes da atualidade e a sua influência no futuro.

Milénio Stadium: Um dos maiores (e piores) acontecimentos de 2022 foi sem dúvida a invasão russa da Ucrânia. Quais serão os próximos capítulos deste conflito? Será que, finalmente, poderemos assistir ao seu fim em 2023?
Paula do Espírito Santo: Para a resposta à questão sobre os próximos capítulos do conflito na Ucrânia impõe-se uma breve cronologia de acontecimentos da história recente que envolvem ambos os países. A invasão russa da Ucrânia, que sucedeu a 24 de fevereiro de 2022, constitui o corolário de uma sequência de operações militares que vinham a desenvolver-se, com um posicionamento militar russo progressivo, em especial mantido próximo das fronteiras ucranianas, na Bielorrússia, Rússia, Crimeia. Contudo, o conflito aberto entre Rússia e Ucrânia evidenciou-se, pelo menos, desde a anexação russa da Crimeia, em março de 2014. Esta ocorre logo após o fim e, sobretudo, na sequência do movimento Euromaidan – iniciado a 21 de novembro de 2013, que duraria cerca de quatro meses. Este movimento reivindicava a renúncia do Presidente Viktor Yanukovitch, pró-russo, exigia medidas contra a corrupção no Governo, defendia a adesão à União Europeia. A intervenção e tomada militar russa da Crimeia, e a realização de um ‘referendo’ sobre a ‘reunificação russa’, vem a legitimar, aos olhos da Federação Russa, e de mais alguns países da comunidade internacional (Arménia, Bolívia, Bielorrússia, Coreia do Norte, Nicarágua, Síria, Sudão, Venezuela, Zimbabwe), a anexação da Crimeia. A ‘transferência’, considerada indevida, da Crimeia, em 1954, para a Ucrânia, enquanto parte da ainda URSS, por iniciativa de Khrushchev (ucraniano), mal entendida e mal encarada por algumas fações russas, seria uma das justificações históricas mais propaladas na justificação desta anexação. Ou seja, verificava-se a reposição e o retornar à suposta ‘pátria-mãe russa’, do que esta entendia ser seu por pleno direito e desígnios históricos. Nesta sequência, a guerra na região do Donbass, iniciada em março de 2014, desencadeia-se a partir de uma rebelião pró-russa, levada a cabo por elementos de uma população, que tal como na Crimeia, é constituída por uma maioria de falantes russos, identificados, maioritariamente, em termos culturais com a Rússia. Contudo, com esta anexação, a Rússia violaria as disposições jurídicas da Ata Final de Helsínquia de 1975, que proibia a alteração das fronteiras territoriais da Europa, através do uso da força. A Rússia violaria ainda o Memorando de Budapeste sobre as Garantias de Segurança, de 1994, de acordo com o qual se previa a independência e integridade territorial da Ucrânia, assim como da Bielorrússia e Cazaquistão, em troca da entrega à Rússia e desistência de armamento nuclear, por parte destes países. O suporte político russo à região do Donbass culmina com o reconhecimento de Putin, em fevereiro de 2022, da independência da região, nas vésperas da ‘operação militar especial’. Esta ‘operação’ é justificada e considerada essencial por Putin através de vários argumentos encimados pela desmilitarização e desnazificação da Ucrânia. Estes aspetos acabam por ser matraqueados, em permanência, junto da população russa, sobretudo através dos meios de comunicação social russos, enquanto justificação lógica, histórica, cultural e sobretudo de defesa e proteção da Rússia, antecipando o ataque que se prevê eminente, por parte dos EUA – o inimigo ora expresso ora latente omnipresente no discurso de Putin. Estas justificações visam o reforço da legitimação interna, junto da população russa, da invasão da Ucrânia. A personificação das decisões tem como rosto principal o Presidente russo Vladimir Putin, que conta com o controlo de uma máquina de campanha propagandística e comunicacional, assente em princípios nacionalistas, de base e identidade história, que remontam à ideia ancestral de uma Rússia pós-revolucionária, planificada, ideologicamente unida, apesar de ser constituída por ‘múltiplas nações’, nas palavras de Putin, e suportada em laços culturais, considerados sólidos, de raízes longínquas e benéficos para o progresso russo.
Num contexto político e geopolítico complexo, que envolve uma guerra que agrava a capacidade reativa da Ucrânia, pela extensão de destruição de vidas, do aumento permanente massivo do número de refugiados, da destruição de cidades e infraestruturas, entende-se que os próximos passos desta guerra aprofundarão ainda mais o conflito e o fosso entre os dois Estados, ucraniano e russo. Torna-se evidente que é difícil que se encontre um desfecho a contento das duas partes, ambas a proclamar uma vitória eminente e irredutíveis no plano da negociação. Dificilmente poderá assistir-se ao final deste conflito em 2023 mas tudo permanece em aberto, sobretudo, se as vias diplomáticas e a intervenção da ONU se intensificarem.

MS: Mas, pelo menos para já, não vemos quaisquer indícios de que a paz esteja para chegar. Assim, para além das já conhecidas e sentidas consequências desta guerra, que outros efeitos vamos sentir enquanto a mesma se arrastar?
PES: Os múltiplos efeitos do arrastamento desta guerra são, num plano geopolítico, de uma demarcação de posições, em termos de apoios, por parte dos Estados que se encontram diretamente na esfera das relações económicas e políticas com a Rússia, com especial destaque para a China. Desta forma, e em função dos apoios que a Rússia conseguir, maior destacamento e posicionamento estratégico, com efeitos económicos, numa escala europeia e global, sentir-se-ão, particularmente aos níveis da energia, da inflação, da escassez de matérias- prima, de cereais, de agravamento da fome em territórios dependentes da produção agrícola ucraniana, particularmente na África subsariana. Para além de tudo isto, e em termos gerais, irá verificar-se o agravamento das condições de vida da população à escala global, europeia em especial, com uma recessão económica profunda e persistente e a acentuação das diferenças entre ricos e pobres. Acresce a alteração dos equilíbrios geopolíticos e de relações económicas, diplomáticas e militares, com particular reorganização e acentuação do papel da NATO, numa escala potencialmente interventiva neste conflito, e com consequências drásticas para os parceiros desta Aliança, se assim for.

MS: O FMI alertou durante o início desta semana para o facto de um terço da economia mundial se preparar para entrar em recessão durante o ano que agora começou – e grandes potências como Estados Unidos e (sobretudo) a China não estão imunes a esta realidade. Que impacto prático é que isto terá a nível mundial? Estaremos prestes a mergulhar numa recessão profunda?
PES: O arrastamento para um ciclo económico recessivo dos vários Estados, que compõem os grupos dos países mais ricos, é uma das consequências mais imediatas, dado o plano macroeconómico de inter-relações e dependências, em termos de cadeias produtivas e de comércio, vinculadas e subsidiárias de matérias-primas e do mercado na China, assim como dos Estados Unidos. Acresce que, ao impacto no plano produtivo, somam-se os impactos, decorrentes do conflito, no comércio a uma escala internacional, em empresas com implantação à escala mundial, assim como o desequilíbrio dos mercados financeiros. Ou seja, a escalada do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, pelos efeitos que lhe estão adstritos, em termos diretos da produção e distribuição de energia, da interrupção das cadeias de produção e distribuição, da escassez de produtos agrícolas, em especial de cereais, assim como nos âmbitos militar, estratégico e geopolítico que direta e indiretamente envolvem a Europa, os EUA, a China, acentuarão os níveis de recessão que têm vindo a verificar-se. Este acentuar da recessão terá consequências no escavar dos desníveis económicos e sociais das populações, com efeitos drásticos em termos humanitários.

MS: Sabendo disso, e tendo em mente a dependência do mundo – e em particular da Europa – da China e Estados Unidos, que papel é que estas potências assumirão no futuro?
PES: O papel a desempenhar por estas potências será crucial, sobretudo se a via diplomática for acentuada, dado o estado de devastação, destruição e recessão económica que se está a atingir. Aquela via é o último e único recurso, sobretudo se se tiver em conta a necessidade de contenção dos eventuais efeitos de arrastamento de demais países (como os EUA, pela via da NATO), com consequências irreversíveis num potencial conflito a uma escala global. Ou seja, se as vias diplomáticas e a ONU não se impuserem nesta guerra, dificilmente se conseguirá a esperada paz e contenção da recessão económica.

MS: A União Europeia parece ter passado um teste de fogo, mantendo-se unida durante a invasão à Ucrânia – será que o conseguirá manter em 2023, ao mesmo tempo que se perspetiva o seu alargamento?
PES: A União Europeia tem vindo a conseguir manter uma opção e visão de união política e apoio expresso à Ucrânia e à sua integração no espaço da União Europeia, espelhando uma opção estratégica de reforço da Ucrânia, em termos políticos, financeiros e militares, por parte de quase todos os Estados membros. O alargamento da União Europeia à Ucrânia poderá trazer uma expectativa de reforço político do projeto europeu, que poderá viver um novo fôlego político pela união de esforços de natureza estratégica, apesar das naturais dúvidas inerentes às condições de preparação e viabilidade da Ucrânia para integrar o projeto europeu. Contudo, o maior desafio e risco advirá das adesões da Finlândia e Suécia à NATO, na medida em que essa realidade poderá ser o gatilho para desencadear um passo de reafirmação da estratégia militar russa de autoproteção e autojustificação do alargamento da defesa/invasão/guerra aos potenciais perigos vindos no quadro do estreitamento e aproximação da NATO aos seus limites fronteiriços.

MS: É importante manter a “amizade” europeia com os Estados Unidos – visto, sobretudo, que se mostraram também eles um importante aliado durante o conflito?
PES: A relação Europa – Estados Unidos funciona num eixo de aprofundamento de um ideário transversal e comum de defesa dos ideais democráticos de liberdade, igualdade, transparência, escrutínio político e fortalecimento dos laços históricos. Contudo, no que se refere ao foro geopolítico e geoestratégico nem sempre se verificou convergência e apoio às políticas americanas de intervenção militar em palcos de conflito internacional, o que motivou algum isolamento e afastamento de alguns Estados europeus em relação às opções estratégicas dos EUA e em especial no seio da NATO. Esta guerra ajudou a revitalizar o sentido do conceito da Aliança Atlântica, espera-se que agora com mais sentido de partilha geoestratégica e escrutínio quanto às opções militares da NATO.

MS: Já em Portugal o final do ano de 2022 ficou marcado por mais um “escândalo”, que resultou numa nova série de demissões. O Governo de António Costa está cada vez mais fragilizado?
PES: As demissões várias que ocorreram num curto espaço de tempo (cerca de nove meses) no Governo Português, em 2022, podem indiciar que, apesar da maioria absoluta, está a verificar-se, neste novo arranque para uma nova legislatura, que existe um esgotamento de soluções de recrutamento de protagonistas para o elenco governativo, em primeiro lugar. Em segundo, não se vislumbram soluções políticas e governativas que sejam adequadas às renovadas exigências da política não apenas num quadro interno como também em face do agravamento das condições económicas recessivas internacionais. Nesta catadupa de saídas de membros do Governo pode ler-se o estreitamento político da ambição de uma Governação estável e sólida, inerente a uma maioria absoluta. Esta ambição poderá estar comprometida e obrigar a uma solução futura diferente, que passe por uma opção política de fundo que envolva não apenas o primeiro-ministro e o Executivo mas também o Presidente da República, numa tomada de decisão, enquanto zelador pelo regular funcionamento das instituições democráticas.

MS: Já não é a primeira vez que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o primeiro-ministro, António Costa, dizem não “estar a par” da situação quando a polémica rebenta. Correm o risco de perder a credibilidade, passando a ideia de que não têm pulso na sua governação?
PES: A considerar-se um desconhecimento, por parte dos do PR e do primeiro-ministro, em relação a opções de escolha de membros do Governo inaptos, que num caso em particular denotou falta de ética e de respeito pela utilização de dinheiro público, significa que existe uma incapacidade política de escrutínio e de intervenção em prol da transparência e integridade das opções políticas. Como tal, apesar de a memória coletiva ser curta e a perecibilidade e voracidade dos acontecimentos políticos ser rápida, em termos públicos, estas decisões erradas, do ponto de vista político, contribuem para a desacreditação e para a perda de espaço democrático e de atratividade eleitoral e política, por parte dos cidadãos, o que empobrece a democracia.

MS: O que perspetiva para o país em termos governativos, económicos e sociais?
PES: O que se perspetiva: dada a rápida sucessão de acontecimentos, a uma escala política nacional, prevêem-se tempos de dificuldades no plano governativo, apesar da maioria absoluta, decorrentes da descredibilização de algumas ações e inações, a que se tem assistido no seio do Governo. Em termos económicos e sociais, o Ano Novo trará desafios acrescidos no plano da resiliência e sobrevivência, a grande parte da população, em face das muitas dificuldades financeiras e económicas resultantes do ciclo recessivo que se está a atravessar e vai acentuar-se. O que se perspetiva ainda é que o país consiga manter o equilíbrio institucional do seu ‘eixo da roda’, na expressão de Adriano Moreira, e seja suficientemente resistente para aguentar os embates políticos que obrigam a democracia a reinventar-se para vencer.
O que se espera: no plano governativo, espera-se, em benefício da dúvida, a bem da economia e da estabilidade democrática da sociedade portuguesa, que se atinjam níveis de maior capacidade de execução das políticas públicas, sob níveis de transparência das decisões que possam ser explicadas sempre que as exigências inerentes às funções públicas assim o exijam.

Inês Barbosa/MS

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