Aida Batista

Um novo amor

"Ó Coimbra do Mondego E dos amores que eu lá tive (...)". - José Afonso

Saber o número de todos os rios de Portugal, respetivos afluentes e as mais importantes localidades por onde passavam era matéria obrigatória na minha instrução primária. O mesmo para a localização das serras e das linhas de caminho de ferro, em cujas estações e apeadeiros tínhamos de picar o bilhete do esforço de os decorar, mesmo que, vivendo em Angola, de nada me servisse conhecer a geografia da metrópole.

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Créditos: DR.

Dos rios, só o Douro fizera parte do meu imaginário de criança, porque era aquele a que meu pai se referia com regularidade, por as nossas raízes daí procederem. Dos outros, um ou outro me chamava a atenção: o Tejo, por exemplo, por do seu largo estuário saírem os paquetes que chegavam ao Porto do Lobito, onde tantas vezes fomos, em passeio, assistir ao ritual colorido das serpentinas atiradas para o cais.

O Mondego pouco me dizia, a não ser a particularidade de ser o quinto maior rio português, e dos poucos, cujo leito corria inteiramente em Portugal. O Douro, por nascer em Espanha, ganhava um ar mais cosmopolita, mas o Mondego, diziam-nos com orgulho, era todo nosso, e atravessava o centro do país, cujas terras éramos obrigadas a enumerar. Mais tarde, e por via dos Lusíadas, imaginava Pedro e Inês, de mãos dadas, a trocar segredos de amor pelas suas margens. Deixou, então, de ser apenas rio para passar a sinónimo de transgressão e testemunha de amores proibidos.

Quando vim para Portugal, comecei a identificar muita da toponímia armazenada na minha memória, e que de nada me valera porque, só quando a comecei a visitar, em trabalho ou em passeio, consegui conhecer os “Caminhos de Portugal”, como dizia a canção que, aqui e ali, eu  ouvia na rádio.

Nada fazia prever que iria tirar a minha licenciatura na Universidade de Coimbra e que teria de atravessar o Mondego, de cada vez que passava a ponte de Santa Clara até ao largo da portagem. Nessa altura, olhava para baixo e facilmente identificava os bancos de areia a denunciar os anos  de seca mais prolongada. Construída a Ponte do Açude, passámos a ter um rio a sério, com volumoso caudal entre as duas margens da cidade.

Apesar de hoje a minha vida estar mais ligada a Lisboa, há muito queria descer o Mondego, num percurso que vai de Penacova até à praia fluvial de Palheiros e Zorro, em Coimbra. Aconteceu no passado domingo, planeado por um grupo de 14 amigos, igualmente desejosos de viver esta experiência.

Transportados de autocarro para o local onde teria início o percurso, cedo percebemos que éramos muitos mais do que havíamos imaginação. Apesar de ter por companhia alguém com alguma experiência, confesso que, no início, me senti receosa por ver tantos caiaques atirados à água ao mesmo tempo. A primeira ideia que me veio à cabeça foi a de uma pista de carrinhos de choque das feiras – uns contra os outros –, onde não faltavam jovens a exibir a sua destreza nas já conhecidas manobras.

À medida que, com a ajuda dos guias, nos fomos organizando e começámos a descer, o silêncio dos verdes das diferentes espécies arbóreas projetadas no espelho de água, apenas interrompido pelo movimento sincronizado das pagaias, convidavam à meditação, porque nos sentíamos a atravessar um templo que só a natureza sabe erguer para nossa contemplação.

Foram três horas a remar, com um pequeno intervalo para um convidativo banho numa das praias. Um prova exigente para quem já não é jovem, como é o meu caso. Mas, no final, a satisfação de que percorrer parte do leito do rio será mais um amor a acrescentar a tantos outros que por lá ficaram.

Aida Batista/MS

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