Aida Batista

Um adeus anunciado

milenio-stadium-aida-batista-adeus

 

Esta será a última crónica a ser enviada a partir da Guiné. Estarei em vésperas de regresso a casa, após um mês de duplas ausências: ausente dos meus e os meus ausentes de mim.

Há palavras e expressões que, até há bem pouco tempo, não faziam parte do nosso quotidiano lexical. “Sair da sua zona de conforto” era uma delas. Começou a ganhar força desde que, há uns anos, os nossos jovens foram convidados a emigrar, sendo desafiados a “sair da sua zona de conforto.” Não sei qual é o perímetro e a área da vossa zona conforto, mas conheço seguramente os da minha.

Defino-os na interseção das coordenadas que mapeiam o meu ninho, construído de galhos e gravetos onde cabem todas as minhas rotinas – adquiridas na socialização com a família, os amigos e o viver em sociedade -, caldeadas num paradigma cujos códigos nos são comuns: ter casa onde viver (própria ou alugada); um carro à porta, mesmo que os transportes públicos possam reduzir a sua utilização; comida sobre a mesa; salário assegurado no final de cada mês, a que se acrescenta a possibilidade de usufruir da oferta de uma imensidão de atividades culturais, dentro e fora de casa.

Sair da sua zona de conforto não é ir para outro lado onde se pode replicar ou até melhorar tudo isto. Sair da sua zona de conforto para fazer voluntariado é privar-se de muitas destas coisas, dadas por adquiridas nos pequenos mundos em que nos ensimesmamos, feitos bichinhos de conta enrolados na recusa de ver o que nos rodeia.
É embarcar e, de repente, desembarcar num lugar onde não se pode beber água da torneira, mas que meia dúzia de gotas de lixívia pura, por garrafa, são o suficiente para a tornar potável. É sair à rua com um calor abrasador, mas ter consciência de não poder expor demasiado o corpo aos raios solares. É sujeitar o pouco do que se desnuda – cara e braços – ao odor do repelente com que diariamente nos esfregamos. É viver sem as mordomias do carro, caminhando a pé pela força do calor, porque o horário de trabalho assim o exige. É abrir alas por entre a poeira da terra vermelha que se levanta com o movimento dos carros e nos empasta a pele e o cabelo. É contrariar o verso do poema de Manuel Alegre – “É possível andar sem olhar para o chão”- porque os buracos são armadilhas constantes em que podemos tropeçar. É saber adaptar-se a uma nova alimentação e treinar as papilas para a descoberta dos sabores locais. É bandarilhar o tráfego que, em cada travessia, nos torna candidatos a uma certidão de óbito. É descodificar linguagens que ganham outros significados fora dos contextos que lhes servem de referente. É mergulhar nas diferentes sonoridades sem que decifremos o sentido das palavras. É deixar de se irritar de cada vez que é confrontado com imprevistos. É saber dar a volta e encontrar soluções no improviso da nossa criatividade e imaginação, tão habituadas ao desenrascanço. É desfilar com a desenvoltura das mulheres africanas, sem que a rodilha do passado nos faça olhar para trás em busca do conforto perdido. É dar-se sem nada esperar, porque não existe moeda de troca para a dádiva da entrega.
É, apesar de tudo isto, regressar mais rico de vivências e concluir que a nossa “zona de conforto” é, afinal, o chão onde somos felizes.

E nada me faz mais feliz do que dar o que me sobra em saber e disponibilidade, para, em troca, e numa relação inversamente proporcional, receber todo o entusiasmo dos que lutam diariamente com uma língua, na esperança de a poderem dominar.

Aida Batista/MS

Redes Sociais - Comentários

Artigos relacionados

Back to top button

 

O Facebook/Instagram bloqueou os orgão de comunicação social no Canadá.

Quer receber a edição semanal e as newsletters editoriais no seu e-mail?

 

Mais próximo. Mais dinâmico. Mais atual.
www.mileniostadium.com
O mesmo de sempre, mas melhor!

 

SUBSCREVER