Aida Batista

No intervalo de dois infinitivos

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“E o português tornou-se língua de várias culturas e cultura de várias línguas”. Guilherme d’Oliveira Martins, Público. Créditos: DR

Esta semana, cumpriu-se metade do tempo da minha missão. Entrei em contagem decrescente dos dias, quando os verbos partir e deixar começam a flexionar-se entre futuro e passado, dois tempos que regem a gramática da vida que, apesar das regras, tem, também ela, muitas exceções. As exceções confirmam a regra – garante-se! Esta, porém, deve ter escapado a toda a nomenclatura gramatical, pois, por muito que a exercite, há sempre qualquer coisa que me falha.

Passadas duas semanas de aulas, poderia já fazer um balanço onde figurasse a carga horária, o número de alunos por turma, a percentagem da assiduidade e uma provisória avaliação quantitativa. No entanto, nem sempre o que fazemos pode ser traduzido  numa contagem matemática e reduzido a números. Isso ficará para os relatórios que terei de preencher. Aí, sim, hão de figurar os dados estatísticos a retratar uma realidade em que o mundo dos afetos e das emoções não têm representação gráfica. 

É desses que quero falar hoje e, ainda, do quanto continuo a aprender depois de tantos anos de docência. Sendo as aulas uma troca de saberes entre “o deve e o haver”, na contabilidade final o saldo pende sempre a meu favor, já que, na coluna do haver, tenho sempre de traçar mais linhas de valor acrescentado.

Elas começam por ser feitas de muita gratidão à “Ser Mais Valia”, pela confiança demonstrada, ao ter-me escolhido e enviado para esta missão; do reconhecimento do esforço que representa para todas as entidades envolvidas que acreditam nestes projetos; da muita alegria com que diariamente os alunos comparecem às aulas; do genuíno interesse por cada novo tema a ser tratado; das dúvidas, ao início timidamente apresentadas, até que o à-vontade se instala e elas se soltam sem vergonha; da oportunidade de satisfazer curiosidades que nos chegam em perguntas que nem sequer imaginávamos; das considerações sempre oportunas sobre os assuntos em debate; do hercúleo esforço para superar as diferentes aprendizagens; das opiniões que, pela sua diversidade, tanto enriquecem o diálogo intercultural; do campo semântico (meu e deles) que se alarga, quando duas línguas vivem numa partilha de bens adquiridos, deitando-se na mesma cama; das calorosas despedidas diárias, em que o sorriso fala da vontade de voltar no dia seguinte; dos cumprimentos afáveis de cada vez que nos encontramos e até dos comentários à forma como nos apresentamos, a que nem o cabelo escapa. A enumeração não fica por aqui, mas tem já dados suficientes para deixarem uma marca de água nas páginas do tomo em que se transformou esta experiência.

Aproxima-se o tempo de partir e de deixar, e é neste intervalo de infinitivos que se conjugam as despedidas. Para trás deixarei a cor da terra vermelha na poeira (literal e não figura de estilo) do tempo; os cheiros dos frutos vendidos na rua por mulheres e homens para ganharem o pão amassado com a ajuda de compradores sensíveis à fome; o colorido das vestes com que as mulheres desfilam, na passarela da vida, os equilíbrios precários do sustento diário; o despertar do dia visto da minha janela virada para nascente, quando, repentinamente, emerge a laranja que solta os gomos do calor que incendeiam o meu contentamento; o companheiro das caminhadas a rematar o dia, que me ajuda a descodificar a cartografia esburacada da cidade, e a camaradagem entre amigos que, apesar de curto o tempo, deu ainda para fazer.

O que deixo sempre cá esteve, mas o que hei de levar é novo – uma experiência de voluntariado vivida pela primeira vez. Essa não irá na mala de porão, com receio de que se extravie. Hei de levá-la comigo, no colo, como um presente atado com o barbante da possibilidade de um regresso. 

Aida Batista/MS

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