A nova realidade da distribuição alimentar
O acesso a uma alimentação variada e equilibrada é uma das principais preocupações de todas as famílias. Os últimos anos têm-se mostrado um desafio tanto para os consumidores como para os fornecedores de produtos alimentares. Se por um lado, a sociedade se depara com o desperdício alimentar, por outro há ainda quem conheça a fome como um sentimento diário. No Canadá, só em março de 2022 foram distribuídos mais de 4 milhões de refeições a cerca de 1 milhão e meio de pessoas que procuraram ajuda em bancos alimentares. Perante este paradigma de preocupação e medo de que cada vez mais se vejam as prateleiras vazias, as culpas são atribuídas a diferentes jogadores – há quem culpe a guerra, os desastres naturais, a falta de apoio aos agricultores, a pandemia ou as grandes empresas.
Matar a fome ficou mais caro
Os últimos anos trouxeram o desafio da pandemia de COVID-19, que deu um forte golpe nas economias dos países e nas carteiras das famílias. Durante dois anos, as populações de todo o mundo têm vindo a fazer um stock de produtos essenciais como materiais de limpeza, desinfetante para as mãos e materiais médicos. Como consequência da propagação do vírus, vários trabalhadores viram-se obrigados a ficar em casa, fábricas fecharam e o acesso a certos produtos começou a escassear.
Com a procura mais elevada do que a oferta e com a nova realidade da inflação, assistiu-se ao aumento dos preços. Segundo o World Food Programme, o aumento de 44% nos custos operacionais daria para alimentar 4 milhões de pessoas durante um mês.
Em 2022 a Rússia invade a Ucrânia, agravando ainda mais este problema. Entre os alimentos que ficaram consideravelmente mais caros, o trigo – um dos produtos mais exportados por estes países – aumentou 13,6% desde o ano passado. Em maio de 2022, os agricultores ucranianos já tinham 20 milhões de toneladas de trigo que não conseguiram chegar aos mercados internacionais. Também a Rússia, que é um dos principais produtores deste cereal, e outros bens, exacerbou este cenário ao restringir a sua troca comercial com países não soviéticos.
Além dos males provocados pelo ser humano, também a natureza está a colocar em causa a produtividade da agricultura, as alterações climáticas têm destruído colheitas e essa será uma tendência que veremos cada vez mais.
A distribuição de produtos alimentares
O negócio de fazer chegar alimentos à população baseia-se primeiramente numa lógica de mercado e o mercado não tem como principal preocupação a acessibilidade a uma dieta equilibrada para o consumidor. O Canadá inclui-se na lista de países com um mercado alimentar dos mais concentrados. Estima-se que apenas quatro grandes empresas detêm cerca de 80% da participação no mercado nacional.
Para captar e reter consumidores, as grandes empresas alimentares têm vindo a investir em programas de lealdade e formas de tornar o processo de compras mais rápido e prático.
A grande aposta do tempo da Covid foram as compras online. Em abril de 2020, as vendas on-line nos supermercados aumentaram 233%. Algumas cadeias de supermercados, como forma de reduzir os seus gastos, apostaram ainda no recurso a robôs e carros autónomos que fizessem essas entregas, ainda que só em zonas urbanas.
Como as grandes empresas reforçam o seu poder económico e político
Uma investigação do Food and Water Watch evidenciou que a escolha dos consumidores não passa de uma mera ilusão, apesar de as prateleiras e frigoríficos dos supermercados aparentarem ter inúmeras marcas. A verdade é que empresas multinacionais poderosas dominam todos os elos da cadeia de fornecimento de alimentos – desde sementes e fertilizantes a matadouros e supermercados. Por exemplo, 93% dos refrigerantes que consumimos pertencem a apenas três empresas.
O tamanho, o poder e os lucros dessas superempresas expandem-se graças ao lobby político e à fraca regulamentação governamental que permitiu uma onda de fusões e aquisições descontroladas. Esta influência dita o que os agricultores cultivam e o quanto são pagos, tal como aquilo que os consumidores consomem. Em média, apenas 15 cêntimos em cada dólar que gastamos no supermercado vão para os agricultores. O restante destina-se ao processamento dos alimentos e ao marketing feito para promover esse consumo.
É um sistema desenhado não para servir o consumidor, mas para servir os diretores e acionistas das grandes empresas. Para afirmar e preservar o seu poderio no mercado, procedem a certas estratégias: tentam reduzir a competição com rivais de tamanho equivalente e manter o domínio sobre os rivais menores; levantar barreiras à entrada de novos concorrentes no mercado; aumentar o poder de compra da empresa sobre os fornecedores e garantir a lealdade do consumidor.
A inflação é a culpada ou é a desculpa utilizada pelas grandes cadeias de supermercados?
O custo dos bens alimentares teve um aumento de 9.9% devido à inflação, sendo que determinados bens viram uma subida ainda maior. As grandes cadeias de supermercados têm vindo a justificar as subidas dos preços de bens essenciais com o aumento da inflação, o aumento dos custos logísticos, a queda da produção e consequentemente, a escassez dos produtos. Contudo, há quem considere que as grandes multinacionais se estão a aproveitar do novo panorama mundial para aumentar os seus lucros. As empresas alimentares têm sido acusadas de não investirem o seu lucro para garantirem salários mais dignos aos trabalhadores e melhorar as suas condições de trabalho, mas sim para comprar ações e aumentar a remuneração dos seus executivos.
Um estudo recente da Dalhousie University comparou os lucros das empresas Loblaws, Metro e Empire Co. onde ficou evidente que os seus lucros têm aumentado entre 2.5% a 2.9% – ou seja, entre 23 a 356 milhões de dólares. Apesar dos seus valores de lucro, segundo este estudo, não parece existir evidências de que estas empresas se estejam a aproveitar da inflação para marcar preços mais elevados. Na verdade, têm-se mantido constantes ao longo dos últimos quatro anos.
Ainda que as suas receitas tenham aumentado, também aumentaram os custos dos bens vendidos e as suas margens de lucro ainda que positivas, não representam um sucesso inexplicável. Estas multinacionais garantem ainda que grande parte das suas receitas provêm de bens de farmácia e não de bens alimentares.
Acredita-se também que o próprio receio de que o consumidor mude a sua preferência, e uma vez que competem com cadeias de supermercados low cost, as empresas não optariam por aumentar os seus preços apenas pela ganância, uma vez que perderiam o seu público.
Os governos têm tido dificuldade em identificar os abusos de poder no mercado. O controlo dos preços poderia ser uma opção pois colocaria um mínimo legal nos preços de bens específicos. A adoção dessa política de intervenção económica tem como objetivo garantir a acessibilidade, mas também pode trazer consequências como a disrupção do mercado livre, perdas para os produtores e uma mudança na qualidade dos produtos. O desequilíbrio entre oferta e procura pode levar ainda à escassez ou ao consumo no mercado negro.
A escassez de alimentos pode chegar, mas talvez não para já
Com as prateleiras dos supermercados cada vez mais vazias, cresce o receio daqueles que pensam que pode chegar o dia em que não se encontram certos alimentos. A verdade é certas regiões do mundo sofrem muito mais com a inacessibilidade a alimentos do que outras. A maioria das comunidades em Newfoundland e Labrador não têm acesso aos supermercados convencionais e aqueles que têm, sentem-se insatisfeitos com os preços, a qualidade e a variedade dos alimentos disponíveis. Mais de 70% dos alimentos da província são importados, ficando dependentes de fatores externos.
A Rússia, sendo um dos maiores fornecedores de fertilizantes, e com as tarifas impostas à importação está a preocupar os agricultores canadianos. Entre o aumento dos custos dos fertilizantes, do combustível, dos produtos de proteção das colheitas, o aumento do custo do terreno e da mão-de-obra fazem com que a produção de alimentos se tenha tornado num negócio bastante dispendioso e incerto. Portanto, os especialistas consideram que os agricultores vão eventualmente proceder a uma seleção das colheitas mais lucrativas o que se reverá numa redução da variedade de produtos. Contudo, garantem que ainda não é necessário soar alarmes.
Para combater este problema, os próprios consumidores têm aderido a novos comportamentos. Uma alimentação à base de plantas tem vindo a crescer quase 20% desde 2020 e estima-se que a adesão será cada vez maior. E como forma de se protegerem do mercado livre, há quem opte por criar a sua horta, inclusive nas grandes cidades com a criação de hortas urbanas comunitárias. Há também quem opte por apoiar diretamente os agricultores e fazer compras em mercados locais. A problemática do excesso populacional face aos recursos despertou a inovação no setor de produção alimentar com a agricultura vertical e a agricultura celular que cria proteína animal sem animais. Com a escassez dos recursos, torna-se essencial pensar fora da caixa e que o ser humano se adapte a uma nova realidade.
Inês Carpinteiro/ MS
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