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“Estou frustrada, mas otimista” – Ana Bailão

 

Ana Bailão é reconhecida por todo o trabalho que desenvolveu na área da habitação, é uma verdadeira especialista nesta matéria, Há muitos anos que na sua qualidade de vereadora e depois vice-Presidente da Câmara de Toronto, tentou alertar para a situação que caminhava de forma perigosa para o estado em que se encontra hoje. Não há habitações disponíveis, pelo menos a preços aceitáveis para a maioria das famílias. O país, e a GTA em particular, cresceu exponencialmente em termos de densidade populacional e a oferta habitacional crescia a um ritmo bem mais lento. As casas disponíveis são hoje manifestamente insuficientes para a procura e a lei de mercado fez o esperado, aumentou os preços de tal modo que tudo o que existe se torna inatingível para a maior parte do cidadão de renda média.

Perante os recentes anúncios dos diversos níveis de governo, quisemos entender o que pensa Ana Bailão sobre tudo o que está a ser proposto. Encontrámos uma mulher frustrada por só agora se estarem a tomar medidas que, no seu entender, deviam ter sido tomadas há muitos anos, mas ainda assim confiante relativamente ao futuro.

Milénio Stadium: Quando ouve estes milhares de milhões de dólares que são anunciados tanto pelo Governo provincial, como pelo Governo Federal, para construção de milhões de casas, que comentários é que lhe ocorrem?
Ana Bailão: Olhe, eu acho que todos os governos estão cientes da urgência e da seriedade desta questão da habitação. Portanto, todos têm noção de quanto esta crise é séria e vai afetar não só o desenvolvimento económico do país, mas o desenvolvimento social e a estabilidade social do país. Eu acho que todos eles, devido a todas estas iniciativas que têm tomado agora, especialmente nestes últimos meses já viram essa urgência. Teria sido melhor, obviamente, que tivessem visto isto há mais tempo.

MS: Numa altura em que não fosse tão urgente, não é?
AB: Exatamente, exatamente, mas a verdade agora é que toda a gente concorda que é preciso construir mais. É preciso que os preços venham mais para baixo. E na realidade, está-se a construir menos, porque a viabilidade dos projetos tem sido afetada devido ao aumento das taxas de juro, devido ao aumento da construção dos materiais, devido ao aumento dos impostos. Portanto, tem havido aumentos no custo da produção das casas, ao ponto de que este ano em vez de aumentar, como era preciso, a construção de habitações, temos visto o número a diminuir.

MS: Além disso, além dessa vertente económica que sublinhou, portanto, o aumento de tudo, também há a questão da mão de obra, o facto de muitas empresas de construção se queixarem de falta de mão de obra. E a questão que se levanta é quando se propõe a construção de milhares de milhões de casas novas até 2031, isto é exequível? Quer dizer, acha que de facto, os planos que estão agora em cima da mesa têm alguma possibilidade de vir a ser concretizados?
AB: Olhe, presentemente, visto a situação que nós estamos a viver agora, embora esteja já a acontecer tanta ação, a realidade é que, como eu disse, porque os projetos não estão a ser viáveis economicamente, não se está a construir nem ao ritmo que nós estávamos a construir, quanto mais ainda mais. Portanto, eu ponho em causa se vamos realmente conseguir esses números, se nós não fizemos muitas destas ações que estão agora a ser faladas, algumas delas que vão ter um impacto mais imediato, outras um impacto mais a longo prazo. Mas nós neste momento precisamos de fazer tudo para que os projetos sejam viáveis economicamente.

MS: O que é que tinha que ser feito para isso acontecer?
AB: É assim, tinha que ser resolvida a questão do financiamento, a questão dos impostos. Por isso é tão importante quando o governo provincial põe dinheiro para as infraestruturas aqui na província do Ontário Isso é muito importante. Porquê? Porque dá a possibilidade às municipalidades de não cobrarem tanto de impostos, o que é chamado de development charges. Hoje em dia, uma casa quando é construída paga quase 30% de impostos depois. Portanto, quando nós estamos a falar em redução de preços de casas, nós temos que ter em conta tudo, tudo o que contribui para o preço dessa casa: os materiais, o trabalho, o terreno, os impostos. E ter 30% só para impostos é muito significativo.

MS: Outra coisa que é importante perceber e eu, pelo menos pela pesquisa que fiz aqui de várias páginas de orçamentos, não encontrei, é – o qual é o modelo de casas que se está a desejar construir? Enfim, fala-se de Affordable Housing, é a expressão mais usada, mas concretamente, do que é que estamos a falar?
AB: É assim quando nós falamos em 4 milhões está se a falar em casas de mercado, não é? Agora, nós sabemos que quando temos uma oferta, tem um impacto no preço hoje em dia. Porque é que os preços têm subido tanto? Porque a procura é maior que a oferta. Ora, obviamente, a procura maior que a oferta tem um impacto muito grande no preço. Portanto, há uma parte do mercado imobiliário que é afetada e que se consegue controlar através da produção do volume da habitação. Depois, há certos tipos de habitação, por exemplo, nós nunca vamos conseguir que políticas de mercado aberto consigam produzir habitação, por exemplo, para uma família que faz em média 16.000 $ por ano, que é o ordenado médio das pessoas que moram no Toronto Community Housing.
Portanto, o mercado nunca vai produzir habitação a esse preço. Nós temos que ver que vai ter que haver investimentos a níveis de governo. Portanto, nós quando falamos em habitação, dizemos que é um continuum, não é? Temos vários tipos de habitação. Temos a habitação, que nós chamamos de apoio, para pessoas que tem algumas necessidades especiais.
Temos a habitação social, depois temos o que nós chamamos affordable housing, que há certos países que dizem que é workforce housing, por exemplo, que é para aquela classe trabalhadora que, para ser honesta, aqui há 15 ou 20 anos não precisava de apoio nenhum. Aqui há uns anos atrás uma pessoa que ganhasse 50 ou 60.000 $ conseguia custear uma habitação aqui em Toronto. Bem, hoje não se consegue. E, portanto, tem que se criar mecanismos para dar apoios a essas famílias, porque são essas famílias que trabalham nos nossos restaurantes, são as secretárias dos nossos médicos, são as pessoas que trabalham nos nossos hotéis, são as nossas assistentes, quer dizer, todas essas pessoas que nós precisamos que continuem a viver aqui na cidade. E hoje em dia, por causa do mercado ter subido tanto, nós precisamos de ter iniciativas que criem esse tipo de habitação para que uma família que faça 70 ou 80.000 dólares consiga viver aqui na cidade de Toronto, o que hoje em dia é muito difícil.

MS: Este dinheiro todo que está a ser, digamos, anunciado a nível federal e provincial, tem que ser depois aplicado, gerido pelos municípios. Não é?
AB: Não necessariamente. Portanto, a maior parte dos fundos que foram anunciados pelo governo federal são empréstimos a empreiteiros e a organizações não lucrativas que queiram construir apartamentos de renda com percentagem de renda mais barata.
Portanto, eles têm um programa de 55 biliões de dólares através do CMC, que é diretamente para empréstimos a organizações não lucrativas e a empreiteiros que façam prédios de arrendamento. Se é uma empreiteira privada e com 20% de renda mais acessível, se é uma organização não lucrativa é com 30%, mas também são condições diferentes, mais favoráveis para as organizações não lucrativas.

MS: Mas o que sobra, digamos, de trabalho para os municípios? Os municípios têm estrutura, não estou a falar apenas de Toronto, eu sei que conhece particularmente bem Toronto, mas acha que os municípios têm estrutura para acomodar a necessidade de trabalho e de distribuição de tarefas para implementar estes planos?
AB: Os municípios têm, a indústria da construção é que não tem. Presentemente, há muitos prédios que deviam estar a começar a ser construídos e que não estão. Mas se o mercado imobiliário, entretanto, se levantar novamente com toda a infraestrutura que está a ser construída e toda a habitação, nós não temos mão de obra suficiente neste país. Aliás, com as pessoas que se vão reformar na área da construção, fala-se que nós vamos precisar de mais de 500.000 pessoas na área da construção.

MS: E depois isto é tipo pescadinha de rabo na boca, não é? Porque tem necessidade de mais gente a entrar no país, mas essas pessoas têm de ficar em algum lado, não é?
AB: Exatamente isso. É um bocado uma equação sem resolução.

MS: Só mais uma questão relativamente ao caso específico de Toronto. Outra questão que se levanta é onde é que se vai construir mais casas?
AB: Há muito espaço em Toronto, espaço disponível, neste momento. Nós temos é que perceber que a cidade vai mudar, não é? A cidade já autorizou apartamentos de quatro andares, e todas essas coisas. Portanto, as nossas áreas residenciais vão mudar. E é normal. Quer dizer, por exemplo, nós no centro de Lisboa não vemos a. percentagem de moradias que se vê aqui praticamente no centro da cidade, não é? Nós vamos a qualquer uma das grandes cidades e vemos a intensificação, vemos prédios de apartamentos, portanto, a cidade vai ter que mudar. Há uma rua que tem um Metro e, ao longo da rua, a maior parte das casas são de dois andares. Quer dizer, qual é a cidade, a grande cidade que tem um Metro e depois em cima tem uma rua cheia de casas de dois andares. Quer dizer, nós temos que intensificar estas coisas, até para fazer uso da infraestrutura que já está paga e que já está construída.

MS: As pessoas para quem vão estas casas mais acessíveis já estão identificadas?
AB: Não. Aliás, como eu disse, a maior parte das casas são casas de mercado. As outras casas as atribuições são feitas por dois processos, pelo menos na câmara de Toronto são feitas por dois processos: algumas por lotaria, quando os apartamentos ficam feitos, a Câmara faz uma lotaria e outras são atribuídas através de organizações não lucrativas.

MS: Está otimista relativamente a este assunto que lhe diz tanto? Quer dizer, acha que há alguma razão para agora estar otimista?
AB: É assim, estou frustrada, mas também estou otimista. Frustrada porque há tantos anos que tantas pessoas falavam em tantas destas soluções, e se algumas destas soluções tivessem sido implementadas há alguns anos atrás, não estaríamos onde estamos hoje. Mas otimista, porque finalmente estou a ver passos bastantes positivos e acho que também nós não podemos, não temos alternativa a não estar otimistas. Isto é uma questão que tem um impacto tão grande no país que nós temos que resolver isto. Ou então o Canadá não vai ser o Canadá que nós conhecemos hoje.

MB/MS

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