Aida Batista

Ao encontro de vozes esquecidas

 

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A verdadeira viagem de descoberta não consiste em
procurar novas paisagens, mas em ter novos olhos.
Marcel Proust

 

 

Com a testa encostada à janela da carruagem, sigo o percurso sinuoso do rio e o casario que pesponta nos declives que servem de fronteira. Casas simples que guardam memórias de barcas que aproximaram as duas margens; outras, mais majestosas: palacetes ou solares antigos, hoje convertidos às exigências do turismo.

À medida que o comboio avançava, dei-me conta de que fazia outra viagem – pelas memórias da minha estreia por estes lugares, com meu pai por companhia. Minha mãe e irmãos já se encontravam de férias na aldeia. Eu ficara em Benguela, porque o calendário letivo estava ainda por cumprir. Foi no ano em que a guerra colonial começou, e tenho bem presente o ouvido atento de meu pai, colado ao rádio que, calado durante o dia numa estante, se fazia ouvir à hora do noticiário. Preocupava-se com o avanço dos “terroristas”, como eram chamados os movimentos de libertação. Na inocência dos meus 12 anos, a guerra era de tal modo distante que não perturbava a pacatez dos meus dias.

Terminado o ano letivo, embarcámos no Porto do Lobito como passageiros de 3ª classe: homens para um lado e mulheres para outro, a partilhar camarotes de beliches com desconhecidos. As diferentes classes funcionavam como compartimentos estanques, sendo interdita a possibilidade de se passar de uma para a outra.

Muito mais tarde, iniciei-me nos cruzeiros. Também nesses navios há diferenças na tipologia dos alojamentos: cabine interior ou exterior, com varanda ou sem varanda, no piso superior ou inferior, mas os espaços comuns eram democraticamente usados por todos os passageiros, independentemente do valor que fora pago. Frequentavam os mesmos restaurantes, as mesmas lojas, os mesmos espaços de convívio, como o casino, as salas de jogos, os bares, as bibliotecas, os ginásios ou as piscinas. Assistiam aos mesmos espetáculos e jogos de animação por todos partilhados.

O comboio avança, à medida que também eu avanço na viagem pelas minhas memórias. Do tempo em que os assentos dos comboios eram de traves de madeira e o odor dos corpos e das roupas denunciavam a falta de certas práticas de higiene. Dos cabazes de vime, saíam pedaços de queijo ou de fumeiro, cortados aos nacos pelo tradicional acessório de todas as viagens – o canivete -, acompanhados com pequenas fatias de pão de milho endurecidas pelo tempo. Levantava-se o garrafão de vinho até ao ombro, rodava-se para o aproximar dos lábios que sorviam goladas para ajudar a acamar a merenda.

Eram assim as viagens do Porto à Régua, onde, pela primeira vez, vi mulheres com cestas de regueifas e doce da Teixeira, enquanto outras apregoavam rebuçados feitos apenas de açúcar caramelizado. Meu pai comprou um pacote para cada um dos meus irmãos, como mimo de chegada. Não sei se já não havia nenhuma camioneta de ligação a Tabuaço, ou se a pressa de meu pai falara mais alto. Recordo apenas que fizemos de táxi o resto do percurso.

Depois de atravessarmos a ponte sobre o rio, voltámos a tê-lo como companheiro de viagem até iniciarmos a subida íngreme e estreita, feita de curvas e contracurvas, que me fizeram entender o significado do verbo “serpentear”, até então apenas usado para embelezar as minhas redações. Sempre com o credo na boca, tal era o receio de que outro carro pudesse chocar de frente, chegámos à aldeia onde minha mãe nos esperava, na casa de sua mãe, a minha avó Maria das Dores.

A casa continua lá, comprada por estranhos, que, no passado fim de semana, ma deixaram visitar. A fachada continua a mesma; o interior, modernizado. Sem lareira no chão, vozes ancestrais reatavam a chama de conversas antigas, que apenas os meus novos olhos continuavam a ver.

Aida Batista/MS

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