A minha primeira viagem de barco foi feita numa idade ainda sem memórias. Com pouco mais de um ano e uma irmã de meses, entrámos – eu, por mão de minha mãe e, ao colo dela, minha irmã – num navio que, de Lisboa ao porto do Lobito, nos levaria ao encontro de meu pai.
Acontecia na época (hoje ainda em alguns casos), que o “pater familias” seguia a dianteira em busca de futuros promissores. Para meu pai, esse futuro morava longe, numa colónia em África, lugar que ainda nenhum outro parente havia tentado, porque tinham preferido o Brasil do outro lado mar, que também prometia futuros risonhos.
Da segunda viagem, feita num percurso inverso ao primeiro, tenho memórias mais vivas dos cerca de 12 dias passados no mar, a perscrutar um horizonte de água sem terra à vista. Também o reencontro familiar seria diferente. Fora minha mãe, grávida do sétimo filho, quem viera a Portugal passar férias com os meus irmãos. Para não interromper o ano letivo, eu ficara sozinha com meu pai, porque na aldeia a escolaridade só ia até à 4ª Classe, e eu já frequentava o Ciclo Preparatório. Desta vez, éramos ele e eu a fazer a trajetória do reencontro familiar.
Passageiros de 3ª Classe, viajávamos separados – ele na zona das cabines para homens, e eu na das mulheres – que o pecúlio até então amealhado não dava para mais mordomias. No entanto, sabia de ouvido tudo o que se passava na área dos privilegiados: que nos jantares da 1ª Classe, os passageiros se vestiam a rigor para o jantar; que uma orquestra tocava durante a refeição para que os comensais pudessem, entre o serviço dos diferentes pratos, enlaçarem-se na sensualidade dos passos de dança; que à volta da piscina se estendiam corpos ao sol, servidos pelos empregados de bar que lhes levavam as bebidas frescas; das matinés dançantes em que os filhos da burguesia endinheirada flertavam sob o olhar complacente de pais que apadrinhavam futuros enlaces, ditados pelos sentimentos “metálicos” contabilizados de cada lado; das espreguiçadeiras estendidas nos deques, onde se descansava o torpor dos dias, entreabrindo os olhos à brisa da maresia.
A menina da 3ª Classe, que diariamente descia ao camarote junto ao porão, partilhado por mais três mulheres adultas, deitava-se a sonhar com aquela vida a que só os mais endinheirados tinham acesso. Contudo, o que aguardava com mais ansiedade era a passagem da linha do Equador. Antes mesmo de embarcar, ouvira falar disso como o ponto culminante da viagem que só os passageiros da 1ª Classe festejariam. Esse dia chegou, sem que tivesse ficado a saber o momento exato em que saíra de um hemisfério e entrara noutro, enquanto a tão celebrada linha do Equador continuava a viver calada no silêncio dos seus sonhos de menina.
Se hoje recordo essa experiência – que mais tarde voltei a viver por quatro vezes, mas com mais conforto – é porque concluí que a festa de passagem de ano (que acabámos de celebrar) e a linha do Equador se assemelham. Ambas são um momento de passagem invisível, em que numa fração de segundos passamos do ano velho para o novo, sem que nada mude. Despertamos na manhã de um ano e deitamo-nos na noite de outro sem, no mínimo, sentirmos o estremecimento de um salto na linha do tempo. E, tal como a linha do Equador, também se atravessa ao som de rituais de passagem para cumprir a tradição.
O novo calendário agora iniciado está cheio de meses por usar para os preenchermos com os votos formulados nas 12 passas que cada um de nós comeu.
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