O problema da morte é essencialmente um problema da vida: Frei Fernando Ventura
Franciscano Capuchinho, teólogo e biblista, Frei Fernando Ventura foi professor de Ciências Religiosas no ISCRA em Aveiro. É intérprete na Comissão Teológica Internacional da Santa Sé. Colabora, como tradutor, com diversos organismos internacionais. Pertence ao quadro de redatores da revista Bíblica, onde assina artigos de aprofundamento teológico. Autor do primeiro estudo sobre Maria no Islamismo, lançou o livro Roteiro de Leitura da Bíblia. Ministra cursos e retiros, percorre o mundo, de convite em convite ou de conferência em conferência, como tradutor. É assíduo comentador de atualidade social e religiosa em diversos canais de comunicação social em Portugal. Homem de uma cultura superior, sempre disponível para uma boa conversa, confessou que para ele é impossível responder de forma simplista às perguntas que havíamos formulado sobre um tema tão profundo como é o da eutanásia. Em troca ofereceu-nos esta reflexão. Todos os que a lerem vão seguramente ficar mais informados e até enriquecidos.
Madalena Balça/MS
Percebo que dentro do contexto do pensamento atual dominante, os pré-conceitos e pré-juízos, sociopolíticos e/ou político-sociológicos, que se acumulam quer à volta do tema, quer à volta do que toda a gente pensa saber sobre o assunto. O pensamento da Igreja sobre o tema, não permite – ainda que seja essa a vontade da maioria -, responder a esta questão com um simples “a favor” ou “contra”, tão ao gosto da preguiça mental do tempo que passa bem como da linearidade simplista com que estes tempos têm tendência a analisar tudo, procurando sempre estar em linha com o pensamento “maioritário”. Sabemos o que está por trás de tudo isto e não é minha intenção fornecer “lenha para a fogueira” que leva sempre a lado nenhum, nem o espaço concedido para este texto permite detalhar nada completamente.
Antes de qualquer pergunta ou resposta simplista é cada vez mais necessário perceber de que é que estamos a falar. Sob o conceito de “eutanásia”, estão conceitos por esclarecer e perceber até ao fundo das suas realidades, implicações e consequências, como seja justamente o de “eutanásia”, “distanásia”, “ortotanásia”, “mistanásia”, “encarniçamento terapêutico”, só para falar nos mais “imediatos” que não são, nem de longe sinónimos indistinguíveis, mas supõem justamente uma abordagem distinta porque encerram em si conceitos que não são sobreponíveis.
Quero deixar claro o meu profundo respeito diante de opção livre de cada um por gerir a sua vida e, neste caso, o final da sua vida, com toda a liberdade, plena consciência, e no uso perfeito das suas capacidades mentais e psico-neurológicas. Evidentemente que também sobre isto haveria muito a explicitar.
Não me arrogo o direito de julgar seja quem for em coisa nenhuma, muito menos no contexto de uma decisão que só por si é credora de todo o respeito quanto mais não fosse pelo sofrimento que acarreta.
Permita-me entretanto, igualmente, que situe estas minhas palavras sobre o tema, no contexto da minha experiência pessoal, também marcada pelo trabalho como capelão no IPO do Porto, todos os anos durante todo o mês de Agosto, logo, com experiência de contacto com muitas pessoas em estado terminal. Admito e sei da existência de pessoas que livremente pedem que as ajudem a chegar ao fim dos seus dias com a dignidade que merecem, mas nunca encontrei no IPO do Porto nenhuma situação destas.
Todas as pessoas que a dada altura da sua vida exprimem o desejo de morte assistida, têm o meu profundo respeito e terão sempre da minha parte e da parte das equipas profissionais com quem trabalho todo o empenho em garantir o mínimo de sofrimento – veja-se supressão da dor – e jamais um qualquer tipo de encarniçamento terapêutico, esse sim, desrespeitador da dignidade humana e daquela que sempre foi a posição da Igreja de defesa da vida e da vida com dignidade desde o momento da concepção até ao momento da morte natural.
No contexto atual da minha realidade de vida, não consigo ir mais além do que isto, ainda que tenha perfeita consciência de estar a ir contra um certo tipo de pensamento que cada vez mais faz caminho na nossa sociedade dita de primeiro mundo.
Sim, tenho experiência de vida em muitos países e realidades do chamado 3º mundo, onde a miséria, o sofrimento e a fome imperam, mas onde existe um tipo de relação com a vida, com a natureza, com a família e com os outros membros da sociedade, muito diferente da nossa e com valores, muitos dos quais a nossa “civilização dita civilizada” há muito que vem perdendo.
Vivemos marcados pelo mito do “super-homem”, cultor da fisicidade do ser, mais do que da espiritualidade do existir, num solipsismo do “eu”, educado para a competição desde a mais tenra idade e com perda acentuada do sentido do “outro”, do sentido do “nós”, do sentido de relações familiares alargadas para além do microcosmos relacional que cada vez mais se vai tornando um espartilho criador de frustrações manipuladas por todo um conjunto de valores que tudo aposta do ter e no ser, mas um ser desligado do “ser com” e num “ter” que vai muito para além das necessidades básicas e tende para o exagero do possuir a todo o custo e de qualquer maneira.
Como toda a gente, não consigo abstrair da realidade de vida que vivo, nos contextos em que a vivo, na geografia e no país onde habitualmente resido (ultimamente cada vez menos), em Portugal e no chamado primeiro mundo, cada vez mais marcado pela angústia social em relação à economia e ao bem-estar social que todos sentimos em crise e que a todos assusta, mais ainda num momento da vida em que a pessoa, deixando de poder responder às suas necessidades básicas, não vê outra solução mitigadora do sofrimento pessoal e das pessoas mais próximas a não ser a morte antecipada, tenha ela o nome que tiver.
A sociedade plurigeracional em que muitos de nós crescemos desapareceu. As famílias alargadas deixaram de ter espaço vital para partilhar o mesmo espaço de habitação. As crianças são confiadas aos berçários, infantários, escolas, atividades extraescolares, os idosos vivem sobretudo em centros de dia e em lares de terceira idade, as casas são cada vez mais pequenas e com rendas e preços absurdos. O tecido relacional no seio das famílias desapareceu ao mesmo tempo que os espaços habitacionais ocupados pelas famílias foram “encolhendo” e a economia da necessidade de sobrevivência – angustiosamente marcada pela cultura do ter – deixou de permitir que o idoso ou o doente em fase terminal e/ou com prognóstico de doença irreversível, se pudesse sentir confortável e não um peso para ninguém.
O problema da morte é essencialmente um problema da vida. Uma vida marcada e martirizada por ausências da “presença do outro”, é o caldo nutricional onde cresce, como não podia deixar de ser, o sentimento de inutilidade, de solidão, de abandono e de sofrimento sem sentido de uma vida que se sente só, abandonada, sem razões para viver. O que nos pode proteger do desejo da morte solitária é uma vida vivida de modo solidário… e isto o nosso chamado primeiro mundo não tem… infelizmente.
No nosso país assistimos placidamente a esta discussão que se arrasta do ritmo ao arrastamento das ideologias dominantes, cegas pela urgência da implantação dos seus “calendários”. No nosso parlamento, aquando da pandemia quando estávamos a viver os dias do maior número de mortos em cada 24 horas, votou-se a “lei da eutanásia”… quando no nosso país, há cada vez menos espaços para nascer com dignidade, – as notícias dos últimos meses não deixam dúvidas sobre isto, é pelo menos de inquietar a pergunta que sai espontânea.
Quando não temos condições universais de segurança para nascer e para viver, por que motivo nos encarniçamos a discutir as condições de segurança para morrer?
Quando se sabe que um dos motivos principais para a decisão de pôr termo à vida tem justamente a ver com a criação de condições de vida com dignidade, começa a ser indisfarçável o desejo de uma sociedade que se quer apressar a matar os “pesos mortos”… a isto eu chamo de eugenia, para não chamar de crime legalizado…
Permitam-me que use a comparação do rio: Enquanto a montante, da nascente da vida, e do seu percurso até ao mar não estiver tudo resolvido, não se podem tratar os assuntos a jusante, na foz, com a pressa que impõe a ideologia de morte.
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