Aida Batista

Os longes a que a emigração nos leva

 

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Créditos: DR

A palavra “longe” pertence à categoria gramatical de adjetivo, aquela com que habitualmente é mais usada. No entanto, sempre que leio sobre processos migratórios, todos eles diferentes e variados, apercebo-me que podia transformá-la em  substantivo, considerando as várias nuances que vai assumindo. 

Cada um enrolado nos seus quotidianos como um bichinho de conta, quando desafiados, como se eu estivesse a puxar o fio das palavras do poema de Sidónio Muralha: “bichinho de conta/conta…/ e o bichinho de conta contou.” E eles contam o quão longe as suas vidas os levou.

Sabemos que o “longe”, além do espaço físico, nos remete para outras variáveis, comuns a muitas destas histórias de vida, como os sinónimos que aqui enumero –  longínquo, remoto, recuado, afastado, separado, apartado, ausente, alheado, fora, alheio, estranho, calado, retraído, indiferente, desigual, divergente –  e que podem ser encontrados em qualquer dicionário, mas, acima de tudo, no livro da vida de quem por eles passou.

Além destes, há todos os outros “longes” de um mundo interior, nem sempre visíveis e nem sempre expressos nas narrativas, umas vezes por pudor, outras porque o exercício de vasculhar memórias pode não trazer as melhores recordações. Por isso, à medida que os leio e releio, tomo cada vez maior consciência de todos os longes ali retratados, numa herança memorialista dos que ousaram caminhar ao encontro de um universo das memórias, nem sempre fáceis de percorrer. Esses mundos são já outros, porque longes do momento iniciático em que haviam partido, quando ainda viam no lá “fora” – a terra prometida genesíaca – uma forma de escapar das suas vidas miseráveis.

No início, longe da família, dos amigos e dos lugares que lhes eram familiares, defrontaram-se ainda com o longe desigual dos lugares estranhos, apesar da solidariedade dos que não ficaram calados, nem indiferentes às suas necessidades, irmanados que estavam na mesma aventura, cuja fatura teria de ser paga o mais breve possível: “Não sou, nem serei  avaro/ se carácter custa caro/ pago o preço”, escreveu Sidónio Muralha, num tempo em que a palavra tinha honra, e ainda se selavam compromissos apenas com a “palavra de honra” expressa num aperto de mãos limpas de truques trapaceiros. Nem todas o foram, tantos são os casos dos enganados por passadores sem escrúpulos.

No entanto, a vontade de triunfar falava mais alto, e só ela podia justificar o longe do desconforto emocional, algumas vezes atenuado por uma ou outra carta, que levava meses a chegar, um telefonema que soava sempre a muito breve, porque as tarifas eram demasiado elevadas ou, os mais afortunados, com viagem de férias no verão e épocas festivas, para revisitar os lugares arquivados na memória, mas tantas vezes desvirtuados pela realidade que encontravam.

O longe construído pela solidão de se viver ainda sem amigos, porque a construção de uma nova rede social leva o seu tempo.

O longe da casa, porque ter um lugar para viver, é apenas isso – um lugar para viver – não significa casa, porque ela só passa a ser “casa” quando a relação de pertença com o país se estabelece. Mas, para isso, é preciso primeiro vencer o “longe” da língua de que não se pode viver apartado, sob pena de a adaptação e a integração terem horizontes cada vez mais longínquos. Até que chega o dia em que se pode dizer: “A busca pelo meu local de pertença chegou ao fim, pois percebi que a minha casa sou eu”.

E tantos outros longes haveria ainda para dizer, não fora eu ter chegado ao longe do limite que estas crónicas me permitem.

Aida Batista/MS

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