Aida Batista

No ventre da filha

 

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Sei lá quantas vezes matei o desejo
E fui p’lo mar fora com alma a sangrar.
Tristão da Silva, “Aquela janela virada pro mar.”

 

Em casa, não era hábito termos o rádio ligado durante o dia. À hora do noticiário, sim, era sagrado. O pai gostava de estar a par do que se passava no mundo. O teu mundo, porém, era bem mais pequeno do que o dele. Circunscrevia-se às tarefas da casa e a cuidar dos filhos que ias parindo, numa cadência regular, até parares no décimo segundo. O perímetro do teu quotidiano só se alargava quando fazíamos os passeios domingueiros em família.

Entre a mudança de fraldas que ainda eram de pano, um peito a toda a hora pronto para dar de mamar ao que chorava, o cheiro que emanava de qualquer iguaria posta ao lume que enchia a casa toda, o movimento da correia da máquina de costura que movia a agulha com que cerzias roupas rasgadas, costuravas bainhas desfeitas ou confecionavas peças novas, porque nem sempre a herança sucessória supria a necessidade de ter uma peça nova para estrear numa ou outra ocasião especial, o adormecer de um mais resistente ao sono, ouvia-te trautear as canções mais populares na época. Dias havia em que o pai, concluído o noticiário, permitia que o rádio ficasse ligado mais um bocadinho. Eram tempos de muita poupança, em que se sacrificava o supérfluo em prol do que era prioritário: comida na mesa, roupa digna e asseada a vestir-nos o corpo e, o mais importante, educação para todos.

Tu, apesar da tua 3ª classe – o máximo que às meninas era exigido -, tinhas ouvido para a música e uma memória fantástica para decorar as letras. Por teres crescido sem saber que existia uma grande extensão de água chamada mar, que só muito mais tarde vieste a conhecer, tinhas uma especial predileção por aquela canção, cujo refrão era “Aquela janela virada para o mar.”

A casa, que então habitávamos, tinha uma janela virada para o mar, que não nos permitia vê-lo, embora nas noites de forte calema, pudéssemos ouvir o rugir das ondas a desfazerem-se na areia e a galgarem o paredão que servia de fronteira à marginal. Bastava que nos deslocássemos um pouco a pé para o termos, silencioso ou bravio, estendido à frente do nosso olhar. Nos dias livres, saíamos de casa já em fato de banho e toalha pendurada ao ombro, e só não íamos descalços porque o calor do asfalto nos queimava a planta dos pés. Liberdades que as mentes mais abertas de África nos permitiam, mas que nunca seriam bem vistas na Metrópole conservadora, onde a maior parte do corpo se vestia de vergonha.

Há bem pouco tempo, em casa de amigos, na ilha de S. Miguel, tive o privilégio de estar sentada na varanda da casa deles, literalmente debruçada sobre o mar. Por momentos, escutei o refrão há tantos anos calado sob a lápide do cemitério da tua terra “Aquela janela voltada para o mar”. Recordei-te na singeleza do teu viver despojado de sonhos, porque só te preocupavas em satisfazer os dos outros, na ingenuidade de certas frases que usavas, sem lhes descodificares o real sentido de algumas palavras, e levei-te até lá. Ninguém deu pela tua presença, asseguro-te.

No meio da conversa, em que se invocavam episódios passados, muitos dos teus estiveram também presentes. Quando fizemos o brinde com vinho do Porto, em flutes de champanhe, porque os donos ainda estão na fase de aquisição do recheio da casa, eles nem deram conta que, em vez de quatro, éramos cinco.

Subvertendo a ordem natural da vida, escondi-te em posição fetal no útero da minha memória, grávida de tantos anos da tua ausência. Quando rebentarem as águas, nascerei para uma outra vida em que, ao desafio, cantaremos “Aquela janela virada para o mar.”

Aida Batista/MS

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