Aida Batista

Pietá de colo vazio

 

 

Na curva da estrada há covas feitas no chão.
E em todas florirão rosas duma nação.
Zeca Afonso, A morte saiu à rua

 

Estamos a 8 de março, Dia Internacional da Mulher, e, como tal, dia de homenagear todas as mulheres. Não as triunfadoras, mesmo que o tenham conseguido depois de uma árdua e esforçada luta, mas as mulheres anónimas, aquelas que nunca tiveram voz e sempre carregaram futuros de angústias por, a qualquer momento, terem de chorar a perda dos seus filhos.

Aquela que quero destacar este ano é a mulher e mãe – Lyudmila Navalnaya. O seu filho Alexei Navalny, ainda jovem, teve a coragem de enfrentar um regime ditatorial, que elimina qualquer opositor, das mais variadas e camufladas formas.

Navalny sabia o que o esperava desde a primeira hora em que decidiu despertar todas as consciências dos que tinham aprendido a resistir e a dizer NÃO!

Começou por ser envenenado a mando do carrasco mor do seu país, numa tentativa falhada de o calar, quando os hospitais alemães o conseguiram tratar, e o seu corpo travou e venceu esta primeira batalha. Casado e pai de dois filhos (uma rapariga e um rapaz) poderia ter optado por se manter fora do seu país, exilado num qualquer lugar, onde não lhe faltariam apoios para viver comodamente com a sua família. Mas não! Isso seria trair os seus ideais e o seu povo subjugado por um tirano.

Ele sabia que a sua luta encontrara já um eco clandestino no recato de muitos lares, apesar de todas as paredes terem ouvidos.

Despediu-se dos seus e, corajosamente, regressou ao país, acreditando, ingenuamente, que, devido à sua enorme visibilidade e apoios internacionais, estaria imune ao que depois aconteceu – julgamento, condenação e encarceramento. Bem no íntimo, sabia o que lhe estava reservado, porque no seu país só se pode falar a uma só voz, como quem lê uma partitura, sem que possa haver alguma nota dissonante.

Navalny era essa nota que, ao saltar da pauta, dava cabo da orquestra, numa desafinação que não o deixava passar despercebido. Perante isso, só havia uma solução: eliminá-la para que não pudesse destoar da harmonia musical do regime. Tê-lo numa cela em Moscovo não fora suficiente, havia que mandá-lo para mais longe – uma colónia penitenciária no Ártico, como quem despacha um criminoso para o degredo.

No dia 16 de fevereiro, fomos colhidos pela notícia, dada de forma assética, fria, gelada, como gelada era a natureza que o envolvia. Alexei Navalny morrera, depois de um passeio pelo pátio da prisão. “Sentiu-se mal” – declararam os noticiários. Não foi surpresa para o mundo, porque Navalny vivia, como a personagem de Gabriel García Márquez, com uma morte anunciada. Apenas não se sabia o dia!

A mãe Lyudmila implorou que lhe dessem o corpo do filho, para o receber após o calvário onde dera o último suspiro. Qual Pietá, esperou de colo vazio, mais de uma semana.

Na certidão de óbito: “causas naturais, e nós aceitamos a mentira como verdade, porque, na terra de Putin, morrer por levantar a voz é “causa natural.”

O medo instala-se, ao ponto de nem as agências funerárias, sujeitas a chantagem, aceitarem transportar o corpo de um mártir. Exigiram a Lyudmila que fizesse uma cerimónia discreta, leia-se secreta, para que ninguém pudesse prestar homenagem ao seu ídolo político. Mas uma mãe, quando nada mais tem a perder, nunca verga por amor a um filho. Levou-o para a Igreja que ele, por vezes, frequentava – Igreja do Ícone da Mãe de Deus Acalma as Minhas Dores.

Cá fora, uma multidão corajosa veio à rua gritar palavras de ordem contra o assassino e a guerra na Ucrânia.
Muitas outras mães clamavam que lhes devolvessem os filhos entrincheirados na frente de batalha. As mesmas que, diariamente e sem medo, continuam a depositar flores no túmulo de Navalny, as únicas armas com que podem honrar a sua memória.

Aida Batista/MS

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