Bater antes de entrar

Adormece o teu corpo com a música da vida.
Encanta-te.
Esquece-te.
Tem por volúpia a dispersão.Cecília Meireles, “Cântico”

A correr desenfreada, precipitei-me para a porta do quarto. À distância de tantos anos, não me ocorre o que teria motivado tamanha pressa. Alguma urgência haveria de ser, porque abri a porta sem primeiro bater, como tantas vezes me haviam ensinado. Entrei no quarto. Em frente da porta, um biombo de três painéis articulados, cobertos de cortinados franzidos de pudor, impedia que se visse a cama de casal. Especada, e sem coragem de avançar mais, gritei: “pai… pai!”

Aguardei um tempo, o suficiente para que ele acordasse (pensava eu) da curta sesta a que diariamente se entregava, na companhia de minha mãe. Por trás do biombo, surgiu uma figura irada que, instantaneamente, pegou na escova da roupa pousada em cima da cómoda. Fixou-me e, com a parte estriada da madeira voltada para baixo, deu-me uma forte pancada seca na palma de cada mão.

– A menina não sabe que nunca se entra sem primeiro bater à porta?!

Quando o assunto era sério, nunca me tratava pelo nome, era “a menina”.

Convicta de que a palmada e a reprimenda haviam resultado apenas da infração a uma das regras de boas maneiras, que uma menina bem-educada deveria seguir, aprisionei as lágrimas nas algemas redondas do orgulho e dei o recado que me levara a chamá-lo. Vestida ainda com os bibes da inocência, nenhuma outra razão me passaria pela cabeça que não aquela que ele invocara. Só quando me fiz mulher, e me entreguei aos ritos iniciáticos da libido, consegui descodificar este episódio, cujo castigo sempre considerara deveras desproporcional à candura natural do meu gesto.

A sesta, tornada ritual diário, deveria ter redundado em algo que a minha ignorância nunca poderia ter adivinhado – dois corpos movidos pelo desejo instantâneo de uma entrega. Num primeiro momento, o calor que fazia convidava à nudez repousada, como se estivessem determinados a uma pequena pausa a meio de um dia de trabalho. Mas, provocada pela excitação lúbrica do olhar, um desígnio mais alto se levantou. E aproximaram-se mais e mais, tocando-se com gestos que ambos conheciam como badaladas nos sinos do prazer. No silêncio da intimidade, exploraram-se o mais que puderam, entre beijos, abraços e entrecruzar de pernas e mãos que conheciam toda a cartografia da volúpia, até chegarem ao momento mais desejado. Em movimentos sincopados, por entre sons sussurrados na cadência do ritmo, procuravam o compasso certo que os levaria ao estremecimento final – aquele que traduzia a mais completa satisfação dos sentidos. De olhos fechados, e presos ainda um ao outro, sentiam libertar-se do esforço gasto no êxtase de um arrebatamento simbiótico. De seguida, a languidez da epifania atingida a deixar-se esvair da energia emprestada ao êxtase da lascívia consumada.
Quando chamei por ele – segundo a minha imaginação de adulta os recriara – deveriam estar assim, deitados e de mão dada, a arrefecer do fogo que os arrebatara em labaredas de luxúria.

Meu pai aparecera-me de tronco nu, mas em cuecas de algodão branco, que davam até ao joelho, como então se usavam. Não cheguei a ver minha mãe, que se manteve recatada na alcova dos deleites conjugais, que, qualquer filha, ainda menina, não imagina que possam ser trocados entre os pais.

Naquela tarde, as minhas mãos doridas das palmatoadas, desconheciam o papel que poderiam desempenhar na exploração do corpo. O meu corpo de menina também não se sentira, até então, percorrido pelo frémito do desejo. Só quando, anos mais tarde, este me bateu à porta, eu percebi por que se deve sempre bater antes de entrar.

Nota:
Convidada a participar numa coletânea de contos eróticos, Edição da Alma Letra, aceitei o desafio e participei com o texto aqui reproduzido.

Aida Batista/MS