Aida Batista

Jess – o homem para quem o mar não foi terra onde morar

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E se no fim faltar o cais para a chegadao mar também é terra onde morar.
Marcolino Candeias

 

Em determinadas cerimónias, são-nos apresentadas pessoas com quem trocamos frases de apreço mútuo. O caráter formal dessas ocasiões nem sempre permite mais do que isso e, no final, fica sempre a sensação de se ter perdido a oportunidade de se alongar uma boa conversa. Se em certos casos os reencontros não se repetem, noutros, estes são-nos proporcionados por quem é sabedor do nosso interesse em repetir certos contactos. Foi o que aconteceu durante esta minha última estadia em Toronto. Eu já conhecia José Eduardo dos Santos e Sousa, da família de António Sousa, a quem dediquei a crónica “O pioneiro que tinha lugar para todos”, entre as 70 que fazem parte no meu último livro “As Bicicletas de Toronto.”

Levada por José Carlos Sousa (seu sobrinho), marcámos um encontro em Mississauga, cidade onde José Eduardo vive, e fomos até um café conversar um par de horas. De uma jovialidade e verbo fácil, que contrariam a sua idade, foi com a simpatia que lhe reconhecemos que falou de si.

Uma história de vida é sempre uma das facetas da oralidade que mais me fascina, mas ouvi-la da boca de alguém que alia um contagiante espírito de humor à elegância da graça de certas tiradas, é um verdadeiro deslumbramento. Não estamos perante um homem que apenas fala, mas de uma fonte que jorra conversas em torrente, umas atrás das outras, num movimento contínuo.

Há alguns anos, já havia lido a sua história, recolhida pelo saudoso jornalista José Mário Coelho, em “Pequenas Histórias de Gente Grande”, mas uma coisa é ler uma história calada nas páginas de uma coletânea, outra, é ouvi-la entrecortada de apartes, máximas, regionalismos, piadas oportunas e até algumas brejeirices, de alguém que, sem hesitações, orgulhosamente fala de um passado que ganha um outro colorido na sua voz gaiata.

Sempre que, pelo meio do diálogo, fazia alguma pergunta para clarificar um ou outro dado, atirava-me com um sorriso divertido: “Ficas para jantar?”, que é como quem diz: se quiseres saber mais, precisas de ter tempo! E aquele “ficas para jantar?” tornou-se numa senha entre nós os dois. De cada vez que tinha mais alguma observação a fazer, eu própria terminava a frase com “ficas para jantar?”, como se a tivesse adotado para fazer soltar mais uma franca gargalhada.

Foi neste pedaço de tarde descontraído e talhado de muito boa disposição que fiquei a conhecer melhor o Jess, forma engenhosa de juntar as iniciais do seu nome e compor um novo para poder fugir ao Joe com que, de forma depreciativa, carimbavam tantos outros portugueses. Durante algum tempo, acompanhei atentamente o enumerar de episódios que fizeram de um jovem de 18 anos (recém-chegado a Toronto a 7 de novembro de 1954), num octogenário cavalheiro com quem tão calorosamente conversei. De tudo quanto contou, não esqueceu a sua primeira noite de fim do ano, passada sozinho e a chorar copiosamente, abraçado ao poste de um candeeiro no cruzamento das ruas Bathurst e Dundas, no coração da comunidade portuguesa. Como música de fundo, em vez das badaladas a anunciar um novo ano, ficou-lhe o ruído do tráfego da rua, que o levava até ao mar da sua Nazaré distante a enrolar a onda de afetos que lá deixara.

Do saldo da conversa – por entre referências à família, velhas amizades, diversos lugares, peripécias circunstanciais, um casamento sólido com a sua Nina (de origem italiana), duas filhas e muitas viagens -, destaco que o que mais me encantou: ter tido à minha frente alguém que soube, com inteligência, tenacidade e muito trabalho, fazer as escolhas que o transformaram no homem realizado que hoje é.

Aida Batista/MS

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