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“Tenho trauma intergeracional devido às experiências de minha mãe biológica em escolas residenciais”

Leigh MacDonald Costa

escola kelowa - Milenio Stadium

 

Nessa última semana o Canadá esteve no centro da atenção mundial em função da visita de seis dias do Papa Francisco ao país. A estadia foi nomeada “uma viagem penitencial” que era aguardada com ansiedade pela comunidade indígena canadiana e seus descendentes.

O tão aguardado pedido de desculpas do Sumo Pontífice chegou logo no segundo dia, em Edmonton, Alberta, num local simbólico, onde funcionou uma das maiores escolas residenciais do país. Na plateia milhares de indígenas, entre sobreviventes desse sistema às gerações que vieram a seguir, mas que seguem marcadas pelos atos brutais que mancham a nossa história.

O Papa Francisco assumiu a responsabilidade pela cooperação institucional da Igreja com a política de assimilação cultural “catastrófica”, que a Comissão de Verdade e Reconciliação do Canadá considerou que equivalia a um “genocídio cultural”. A estimativa é de que 150 mil crianças das First Nations, Inuit e Métis entre os 4 e os 16 anos tenham frequentado as escolas residenciais no Canadá onde foram sujeitas a abusos físicos e sexuais sem que nada fosse feito. Essas escolas foram criadas pelo governo Federal para afastar as crianças da sua cultura e cabia às igrejas a função de administrá-las. A Igreja Católica foi a responsável pela grande maioria, operavam 66 das 139 escolas do Canadá. Entre uma das pessoas que ouviu com atenção o que foi dito pelo pontífice, e que ressoou fundo na alma e coração, estava Leigh MacDonald Costa, de 52 anos, cuja mãe e os ancestrais frequentaram o sistema de escolas residenciais. Ela nasceu em Toronto, mas a mãe nasceu na Serpent River First Nation, uma comunidade localizada entre Sault Ste. Marie e Sudbury ao longo do Canal Norte do Lago Huron. Ainda na primeira infância foi entregue à adoção e criada por uma família católica europeia branca. Só na idade adulta foi conhecer e ter contato com a mãe biológica e avós e com a comunidade indígena a que pertence.

Desde muito pequena conta ter tido a sensação de “não pertencimento”, já que apesar de ter sido criada por uma família branca ainda era a “menina indígena” e anos mais tarde quando finalmente conheceu sua família biológica o sentimento veio à tona mais uma vez, já que na comunidade indígena era “a indígena da cidade”. Leigh acompanhou as dificuldades emocionais e a dependência enfrentadas pela mãe biológica, sobrevivente desse sistema cruel de doutrinação, e sente que a sua vida foi profundamente afetada por essa história que marcou negativamente o Canadá.

Muito embora considere o pedido de desculpas do Papa Francisco um marco histórico ainda acredita que muita coisa precisa ser feita por parte da Igreja Católica e também do Governo canadiano para que o povo indígena possa de fato curar as feridas do passado e viver de maneira digna, honrando e celebrando as suas tradições.

indian-native - Milenio StadiumMilénio Stadium: O que significa para você e sua família esta “viagem penitencial” do Papa Francisco ao Canadá e em especial o pedido de desculpas aos sobreviventes de escolas residenciais indígenas e suas famílias pelo papel que a Igreja Católica Romana desempenhou naquelas instituições?
Leigh MacDonald Costa: Eu acho que é importante que a Igreja realmente reconheça e fale sobre aquilo que eles mantiveram em silêncio por tantos anos. Na minha opinião, o Papa Francisco está fazendo um esforço sólido em nome da Igreja Católica para assumir a responsabilidade pelo papel que desempenhou no desenvolvimento das escolas residenciais. Embora este seja um assunto dominante nos noticiários há pouco mais de um ano, não é a primeira vez que é abordado. Lembro-me de assistir a um filme da CBC em 1989 chamado “Where the Spirit Lives”. Esta foi a primeira vez que aprendi sobre escolas residenciais. Não foi algo ensinado na história do Canadá quando frequentei o ensino primário e secundário nos anos 80. Depois de assistir ao filme, fiz muita pesquisa sobre escolas residenciais. Acabei escrevendo muitos trabalhos de pesquisa na universidade sobre o assunto. Fui adotada por uma família branca quando criança. Não conheci a minha mãe biológica até 2010. Através de telefonemas e reuniões com ela, aprendi sobre as experiências da minha família biológica nas escolas residenciais. Meus bisavós, avós e minha mãe frequentaram a escola residencial. Quando minha mãe biológica e seus irmãos frequentaram a instituição, era de se esperar que todos os indígenas da reserva fossem para um internato. Estas foram as palavras da minha mãe biológica para mim. Ela não falava muito sobre suas experiências lá. Mas disse que, quando voltava para casa nas férias, não tinha uma conexão com a sua família. Ela disse que seus pais não eram afetuosos com ela e por isso ela nunca aprendeu a ser afetuosa com seus próprios filhos. Então, em certo sentido, ela perdeu sua capacidade de demonstrar sentimentos. Isso sempre me deixou muito triste por ela, porque, embora tenhamos nos conhecido mais tarde em sua vida, pude ver as lutas significativas que ela teve em seus relacionamentos. Tanto com seus irmãos quanto com seus filhos. Não posso falar por minha mãe biológica ou por nenhum de seus ancestrais, mas para mim, o reconhecimento do chefe da Igreja Católica significa que os anos de dor reprimida e perda de cultura, idioma, tradições, família e vida que muitos sofreram estão finalmente sendo trazidos à tona. Essa parte da nossa história não está mais sendo “varrida para debaixo do tapete” e está sendo reconhecida pelo que era: um genocídio cultural.

MS: Como as experiências de sua mãe e ancestrais nas escolas residenciais afetaram você e sua vida? Alguma vez eles falaram sobre a experiência que tiveram nesse sistema com você?
LMC: Como eu disse anteriormente, minha mãe biológica não me contou muito sobre as experiências dela nas escolas residenciais. Ela frequentou dos 5 anos até os 15 ou 16 anos. Eu sei que além de ter perdido as suas tradições e cultura, a família dela foi dilacerada. Isso a afetou por toda a vida e ela nunca foi capaz de se apegar ou criar laços de afeto como deveria seja com seus pais, irmãos ou filhos. Imagino que as experiências dela por lá também contribuíram para sua dependência de álcool durante a vida. Ela era uma mulher incrivelmente forte e resiliente. Entregar seu bebê para adoção nunca é uma coisa fácil de fazer, mas ela sabia que não poderia me dar o que eu precisava para crescer e florescer, então ela fez o que achou que seria melhor para mim. E realmente foi. Eu sou um “60s Scoop baby”. Fui adotada por uma família branca; não tenho noção da cultura ou tradições indígenas. Fui criada numa família católica europeia rigorosa. E esses são valores que ainda ressoam em mim. Não consegui passar a cultura indígena tradicional para o meu filho, o que realmente me deixa triste porque isso é uma grande parte de quem eu sou. Eu não posso ensinar algo de que eu não sei nada. E não é tão fácil aprender essas tradições agora. Nunca me senti aceita na comunidade indígena. Quando vou para a minha reserva me destaco como uma “indígena da cidade”. É difícil se encaixar quando você está tão afastado da comunidade. Acho que teria que dizer que tenho trauma intergeracional devido às experiências de minha mãe biológica em escolas residenciais. Apesar de não ter falado sobre suas experiências lá, ela sabia que quando engravidasse, aos 16 anos, do primeiro filho, deveria deixar a reserva. Ela saiu em 1956 para ir para Toronto porque não queria que seus filhos frequentassem o mesmo sistema escolar que tirou tanto dela.

MS: Alguns líderes indígenas disseram estar preocupados que a visita do Papa abra velhas feridas e alguns pediram por mais apoio à saúde mental dos indígenas. Você concorda?
LMC: Com certeza! Minha mãe biológica foi compensada com uma quantia desanimadora ($ 17.000) pelo período em que frequentou a escola residencial. Isso aconteceu quando ela estava já na idade adulta. Eu fui compensada com $ 25.000 por ser uma sobrevivente da geração “Scoop dos anos 60”. Essas indenizações são apenas um band-aid para um problema muito maior. Os $ 25.000 me ajudaram? Claro, pude guardar uma quantia para investir na educação pós-secundária do meu filho. O valor total concedido na ação coletiva “Scoop dos anos 60” foi de $ 875 milhões. Mas esse dinheiro teria sido muito mais bem gasto em apoio à saúde mental e à adição em comunidades indígenas. Mesmo esta visita do Papa Francisco está custando ao Governo canadiano $ 20 milhões. Se eles estiverem dispostos a gastar tanto em uma visita curta, espero que estejam disponíveis para gastar a mesma quantia em reservas do Norte que não têm sequer água potável.

MS: Este pedido de desculpas tem um significado histórico, mas a pergunta é: é o suficiente? O que mais a Igreja deveria fazer para realmente se retratar pelo seu papel neste passado trágico?
LMC: Este pedido de desculpas tem um enorme significado histórico. Os povos indígenas foram silenciados sobre essa atrocidade por tanto tempo. Aqui temos o Chefe de uma das organizações responsáveis por esse genocídio cultural e eles estão finalmente admitindo seu envolvimento. Não sei se muito mais pode ser feito, mas acho que o reconhecimento e a responsabilidade por esse passado é o mais importante. A atual administração não pode compensar os pecados do passado. Imagino que alguns podem esperar compensação financeira da Igreja. E embora isso possa ser útil, só ajudará verdadeiramente se os fundos forem destinados à cura dos sobreviventes e de suas famílias.

MS: O que seria necessário para que se alcance uma reconciliação completa e você acha que isso será possível?
LMC: O Governo canadiano precisa intensificar e investir na cura das comunidades indígenas. Os pagamentos podem ser ótimos no momento, mas eles realmente ajudam a preservar a cultura indígena futura? Existem comunidades remotas neste país que não têm acesso a necessidades básicas que todos nós damos como garantidas. Isso não está certo. Embora falemos da Igreja Católica e de como ela é o precipício do sistema escolar residencial, eles não poderiam ter feito o que fizeram sem o apoio do Governo canadiano. Foi através deles que a Igreja conseguiu o financiamento para construir essas escolas. Embora eles já tenham compensado os sobreviventes de escolas residenciais há décadas por suas experiências, este é claramente um problema muito maior. Filhos de sobreviventes de escolas residenciais estão passando por traumas intergeracionais em função das experiências de seus pais. E seus filhos passarão pelos mesmos traumas. Porque as famílias foram destruídas. Você pode imaginar como seria se alguém tentasse tirar à força quem você era? Poder celebrar com orgulho a sua herança portuguesa. Eu amo que a comunidade de vocês tenha celebrações culturais portuguesas anualmente e sei o quanto de trabalho é necessário para que isso aconteça e espero que todos estejam muito agradecidos por poder celebrar quem são. Eu amo isso neste país e na cidade de Toronto; sou grata por sermos tão multiculturais. Mas não é o caso dos primeiros povos deste país. Não deveria ser assim.

MS: Além da Igreja Católica, você acredita que o Governo do Canadá deveria ser mais proativo em termos de reconciliação e dar um melhor apoio aos indígenas neste país?
LMC: O Governo canadiano tem um papel ENORME em tudo isso. Quem financiou as escolas residenciais? É lamentável que tenhamos comunidades indígenas neste país que ainda lutam para ter acesso às necessidades básicas. O isolamento em reservas remotas sem água limpa é um ótimo exemplo disso. Por que o financiamento não está sendo colocado nessas comunidades em dificuldades? O racismo indígena é definitivamente uma questão a ser abordada. Mas quem continua a contribuir para esse racismo sistêmico? O Governo canadiano, é claro. Tanta coisa precisa acontecer para a cura das comunidades indígenas do Canadá. Eu não poderia nem dizer onde isso deveria começar porque é muito vasto. Eu venho de uma comunidade remota, mas não consigo imaginar como seria viver 750 km a Norte de lá. As pessoas em Attawapiskat são basicamente esquecidas. Reservas foram feitas pelo governo para resolver conflitos entre povos indígenas e colonos. Mas esta era uma terra indígena. Isso parece tão errado. O Governo canadiano definitivamente deveria ser muito mais proativo em termos de reconciliação. Eu sei que há algumas centenas de anos era totalmente aceitável saquear e reivindicar terras. Mas estamos muitos anos adiantados aqui; e agora não é mais assim. Eu e meu filho temos “estatuto indígena”. Isso significa que temos algumas provisões básicas do governo, como benefícios básicos de saúde e resgate de PST (provincial sales tax) no imposto sobre vendas. Todo mundo que não é indígena acha que ganhamos tudo “de graça”. Esse não é o caso.
O que nossas comunidades precisam para sobreviver e prosperar é cura que só pode ser feita através da melhoria das comunidades e ajuda com a saúde mental e os cuidados com as dependências. Sem isso, nossa cultura e comunidades continuarão sofrendo.

Lizandra Ongaratto/MS

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