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Histórias com vida

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Laura Gonçalves: um nome a não esquecer. Primeiro porque com certeza já o ouviu, e depois porque vai voltar a ouvi-lo – e há muitas e boas razões para isso. A diretora, ilustradora e animadora freelancer tem vindo a dar grandes, fortes e corajosos passos no cinema de animação.

Foi em 2012 que realizou a sua primeira curta de animação, “Três Semanas Em Dezembro”, exibida nacional e internacionalmente e vencedora do Prémio Nacional da Animação pela Casa da Animação. Seguiu-se, em 2015, a co-realização da curta “Nossa Senhora da Apresentação” com Abi Feijó, Alice Guimarães e Daniela Duarte, Melhor Filme de Animação no Festival de Cortos de Bogotá, Colômbia.

Já em 2017 co-realizou com Alexandra Ramires a curta de animação “Água Mole”, que arrecadou um total de 19 prémios, entre eles o de Melhor Curta Portuguesa na Competição Internacional da Monstra 2018 e Melhor Filme do Strano Film Festival em 2019.

 

 

Mais recentemente arrecadou, entre outras distinções prestigiantes, o Grande Prémio e o Prémio do Público para melhor curta-metragem no Animafest Zagreb, um dos mais importantes festivais de animação mundiais, com a curta-metragem “O Homem do Lixo”, que dá vida às histórias do seu tio Botão, que são contadas e revividas numa conversa à mesa. Este filme estará em exibição na edição deste ano do Toronto International Film Festival e Laura Gonçalves falou com o nosso jornal acerca das suas expectativas em relação a esta que é a estreia norte-americana do filme.

laura9286 - milenio stadiumMilénio Stadium: Os trabalhos da Laura têm sempre uma grande ligação à sua terra-natal, Belmonte, ou ao interior de Portugal. É importante para si, enquanto profissional, mergulhar nas suas raízes e reviver momentos passados?
Laura Gonçalves: Sim, para mim como autora é importante representar esse contexto, as vozes das pessoas e as vivências destas regiões que caracterizam tanto o passado e presente do nosso país. São o reflexo de uma cultura, dá-me muito prazer poder dar voz a histórias pessoais, seja de pessoas que me rodeiam ou que vou conhecendo no meu caminho. O cinema tem um papel fundamental de documentar e possui ainda o poder em dar voz às pessoas que de outra forma não seriam ouvidas.

MS: Como é que a Laura pensa e desenha os seus filmes? Consegue explicar-nos, em traços gerais, como é que acontece todo o processo criativo?
LG: Os filmes têm uma base áudio muito forte: as vozes e os sons reais são os alicerces de toda a produção do filme. Depois de ouvir e selecionar as entrevistas, é criada a faixa de som – a narrativa sonora -, em cima da qual depois desenvolvo a narrativa visual, que vou ajustando par a par numa segunda fase até atingir um casamento perfeito entre as duas. A história contada pelas vozes influencia a parte visual, e esta tenta contar o que não pode ser dito por palavras, tentando sempre que não se cancelem uma à outra. As imagens são muito inspiradas nas vivências e na minha experiência com as pessoas – no caso do “Três Semanas em Dezembro”, é baseado nos sketchbooks que preenchi com desenhos de vários momentos com a minha família enquanto os gravava, durante as três semanas na altura do Natal, em Belmonte. Já o Água Mole é inspirado numa viagem que fizemos juntas (eu e a Alexandra Ramires): a nossa passagem e estadia por alguns sítios específicos, que estão refletidos nos cenários, nas tradições e também nas próprias pessoas que conhecemos. O Homem do Lixo é baseado na minha família e as imagens são parte da memória que tenho de criança, enquanto o presente é baseado na realidade do nosso contexto.

MS: Como é que vê a crescente importância que os filmes de animação têm vindo a assumir no cinema?
LG: Tenho estado a ver com bastante entusiasmo e prazer este óbvio crescente interesse e valorização do cinema de animação nos festivais generalistas e também o reconhecimento dado à animação portuguesa, que tem vindo a ser premiada internacionalmente. É claro que isso beneficia muito o nosso trabalho, no presente e futuro! É interessante perceber que o nosso trabalho chega a vários públicos, mas ainda há muito a fazer no que toca à divulgação desta arte enquanto cinema de autor independente.

MS: Ainda assim, acha que em Portugal já é dado o devido reconhecimento à animação? Ou ainda há muito desconhecimento em relação a esta arte?
LG: Em Portugal existe muito desconhecimento em relação ao cinema que é feito cá dentro em geral, não só de animação como de imagem real. A animação particularmente sofre mais por estar associada a uma ideia de entretenimento para crianças, pelo facto de serem precisamente os filmes das indústrias gigantes americanas que mais vemos anunciados nos cartazes e televisões – existe muito poder na publicidade, e é isso que acaba por chegar ao maior número de pessoas. Desta forma crescemos e aprendemos a assumir que é apenas esta a animação que existe.
A televisão poderia ter um papel importante na divulgação desta forma de arte, porque é difícil para o público geral ver os filmes que fazemos, que são feitos para um público muito mais abrangente. As televisões não têm esse slot na programação – com exceção do Cinemax, que passa na RTP2 bem fora do horário nobre.
Existe um trabalho de educação de públicos muito importante a ser feito por parte dos festivais, que levam os jovens das escolas ao cinema e debatem os filmes. Os cineclubes e o plano nacional de cinema também são muito importantes nesta luta para que o cinema português chegue ao máximo de pessoas possível.

MS: E em relação a financiamento? De que forma é que a animação é apoiada no país?
LG: No caso dos filmes que fazemos, existe um concurso de apoio ao cinema pelo Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), onde diversos realizadores concorrem com um projeto para a produção de um filme de animação (onde apresentam um guião, sinopse, personagens, orçamento, etc). Este apoio é fundamental, porque um filme de animação demora muito tempo a fazer e os métodos artesanais tornam-no muito custoso, e de outra forma seria muito difícil manter um cinema de autor tão forte. Pode também haver uma ou mais co-produções com países estrangeiros, que (através do mesmo sistema nos seus países) ajudam à produção do filme. Neste caso existe uma parte do filme que é executada por artistas dessa nacionalidade.

MS: O seu mais recente trabalho, “O Homem do Lixo”, já foi distinguido por diversas vezes, alcançando galardões na Monstra ou no Animafest Zagreb, a título de exemplo, e conta com 27 seleções em festivais e 28 exibições. Podemos saber um pouco mais sobre a sua história?
LG: É uma curta-metragem de animação, baseada em entrevistas que fiz à minha família, sobre diversas situações da vida do meu tio Botão, desde a ditadura em Belmonte, a Guerra Colonial, a sua ida a “salto” para França onde trabalhou como homem do lixo durante 30 anos. O filme passa-se durante um almoço, à mesa, numa quente tarde de verão em Belmonte, onde a família se junta e partilha as várias memórias.

MS: Qual será o segredo para o sucesso deste trabalho? Será que o lado mais “familiar” e a temática da emigração – com que muitas pessoas com certeza se identificam – também contribuíram para tal?
LG: O filme aborda uma história muito íntima e pessoal, no entanto é também a história de centenas e milhares de pessoas que também viveram ou cresceram a ouvir falar sobre estes momentos – é, no fundo, a nossa história, e por isso era importante para mim falar sobre ela, como parte integrante do contexto em que cresci e onde tenho raízes muito fortes. Agrada-me muito essa característica da animação, que é precisamente a capacidade de identificação e da reflexão sobre a sua própria história.

MS: Um dos elementos que salta à vista e que fica na memória de todos aqueles que assistem ao filme é o macaco: podemos saber como surgiu a ideia de o criar e o que é que ele significa?
LG: Eu cresci a ver o retrato do meu tio na guerra em Angola, com o macaco no ombro. Sempre esteve ali, desde que eu me lembro. Mas nunca soube muito bem o que aconteceu nesse contexto, e o filme também transparece isso. A memória é algo que flui, que se transforma, e pode dar largas à imaginação. O macaco sai desse retrato e acaba por servir como ponte de ligação entre o presente e o passado das memórias, e serve também como um elemento onírico que representa a presença e o humor do meu tio à mesa com a família.

MS: No festival Animafest Zagreb esta curta conquistou não só o Grande Prémio do júri profissional como também o prémio do público, tendo sido apenas a quinta vez em 50 anos que tal aconteceu. Acredito que este também tenha sido um momento muito especial para si…
LG: Sim, foi uma surpresa muito agradável, porque foi também a primeira vez que o filme foi mostrado em contexto internacional, e eu não tinha a certeza até que ponto as pessoas que não falam a língua portuguesa iriam perceber o conteúdo da história, por ser muito falado. Então foi uma agradável surpresa saber que não só perceberam, como também gostaram.
O conjunto dos prémios do júri com o prémio do público foi muito importante para mim e para o trabalho que faço e quero continuar a fazer, por me aperceber que de facto é tão importante dar a ver os nossos sítios, ouvir as nossas vozes e contar as nossas histórias.

MS: O que significou para si e para o seu trabalho saber que “O Homem do Lixo” iria estar em exibição no TIFF, sendo que esta é a estreia norte-americana do filme?
LG: É um festival pelo qual tenho muito carinho, fui a primeira vez com o Água Mole, com a Alexandra Ramires. Tendo em conta que é um festival que junta vários modelos de contar histórias, formatos, repleto de uma variedade de realizadores provenientes de diferentes contextos, é uma riqueza poder fazer parte desse grupo de pessoas, partilhar experiências, e sentir também o feedback do público de Toronto, que é também ele um público muito variado.
Existe também uma comunidade muito grande de portugueses, o que torna a experiência mais interessante pela curiosidade em saber de que forma é que as pessoas se reveem no filme.

MS: A Laura já tinha participado anteriormente no TIFF com o seu filme “Água Mole” – é bom “estar de volta”? Sente que este é, mais uma vez, uma validação e reconhecimento ao valor do trabalho que tem vindo a desenvolver?
LG: Ser selecionada para o TIFF é um privilégio, tendo em conta a quantidade e qualidade dos filmes que concorrem. Sinto-me verdadeiramente privilegiada. É muito bom saber também que o filme é exibido a tantas centenas de pessoas, num festival que é tão prestigiado. Além disso, a organização do festival faz um trabalho incrível ao permitir que pessoas de sítios tão distantes se juntem e conheçam.

MS: Que expectativas tem para a apresentação da curta-metragem no Festival? Podemos saber se a Laura estará presente em Toronto?
LG: Vou estar presente, mas infelizmente não marcarei presença todos os dias. O filme estreia dia 8 de setembro, mas eu estarei dia 15, que é o dia em que passa no TIFF Bell Lightbox Cinema 3 – Piers Handling Cinema pelas 12:00 pm. E gostaria muito de falar com pessoas da comunidade – portugueses, luso-descendentes -, para conhecer as suas histórias e saber também a sua opinião/sentimentos/emoções/reflexões em relação ao filme. Depois do TIFF, O Homem do Lixo vai viajar para o OTTAWA International Animation Festival, onde estarei também, antes de voltar para Portugal.

MS: O próximo projeto poderá ser uma longa-metragem? Gostaria de explorar essa e, quem sabe, outras vertentes?
LG: Gostaria de explorar o formato longa por ser uma forma diferente de contar histórias. O próximo projeto é uma curta-metragem de animação documentária, com a Alexandra Ramires, chamado Percebes, também baseado em entrevistas. Para além disso estamos ambas a desenvolver projetos para uma série (cada uma o seu), precisamente porque temos vontade de explorar a potencialidade de outras linguagens e formatos para contar uma história.

MS: Há algum objetivo ou plano futuro da Laura que possa partilhar connosco? Que ambições tem para os próximos anos?
LG: Neste momento estou a trabalhar na próxima curta com a Alexandra Ramires e num projeto de série de animação documentário, em desenvolvimento com a escritora Lúcia Vicente e a ilustradora Cátia Vidinhas, através da cooperativa BAP Animation Studios, da qual sou um dos membros fundadores, e com a qual pretendo continuar a desenvolver trabalho autoral nestes próximos anos, sempre rodeada da amizade da equipa fantástica com quem tenho a sorte de trabalhar.

Inês Barbosa/MS

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