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“O futebol feminino ainda é visto pelo prisma masculino no que diz respeito a decisões”

Fernando Eurico

 

A comunicação social tem a obrigação de fazer chegar ao público todas as informações que sejam consideradas relevantes para a vida em sociedade. Prestar esse serviço é, ou deve ser, encarado como uma missão, mas no mundo cada vez mais dominado pelo poder do dinheiro, é sabido que as televisões, as rádios e os jornais tendem a interessar-se por aquilo que à partida dá mais audiência ou tenha um maior impacto junto do público.

É já muito antiga a discussão (pelo menos em Portugal) da predominância do futebol relativamente a outras modalidades desportivas, mas agora há uma outra vertente que tem sido alvo de análise crítica – que atenção é dada ao desporto feminino? Há ou não diferença relativamente ao desporto masculino? O Campeonato do Mundo de Futebol Feminino que está a decorrer do outro lado do mundo tem registado números recorde relativamente à cobertura jornalística, mas ainda há um longo caminho a percorrer. Citando Antonio Machado, Fernando Eurico, reputado jornalista português que há muitos anos se especializou em jornalismo desportivo, lembra-nos nesta entrevista que concedeu ao Milénio, “o caminho, faz-se caminhando”. Eu acrescento, citando Jorge Palma, “enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar”.

Milénio Stadium: Quando decorre um evento como o campeonato do mundo de futebol masculino, aqui na Grande Área de Toronto, é comum as ruas e as cidades encherem-se de bandeiras de adeptos de todos os países participantes. Está a decorrer o campeonato do mundo de futebol feminino e não vemos absolutamente nada disso. O que significa este facto, na tua opinião?

Fernando Eurico: Significa que o futebol feminino, apesar do extraordinário crescimento a nível global, ainda não consegue cativar a atenção da maioria. Todos os processos de crescimento e afirmação necessitam de tempo e mesmo numa era de igualdade do género ninguém de bom senso pode querer comparar, por agora, um evento a outro. Um tem quase 100 anos de história o outro surgiu em 1991.

MS: Sabemos que, de um modo global, os meios de comunicação valorizam tudo o que acontece com os chamados desportos de grandes massas e desprezam os que não atraem a atenção de grandes multidões. E também sabemos que em desportos tradicionalmente masculinos (como é o caso do futebol) a versão feminina é também menorizada em termos de cobertura noticiosa. Como jornalista, que há anos se dedica a trabalhar este mundo de desporto, o que sentes relativamente a isto? Há algo que possa justificar esta realidade?

FE: Importa dizer que nunca um evento de futebol feminino teve tanta atenção mediática como este na Austrália e Nova Zelândia. Mas como em tudo o caminho faz-se caminhando. Julgo que não é querendo tudo igual ao masculino, sem ter base de comparação no número de futebolistas, seleções, história e receitas geradas, que o futebol no feminino pode ganhar a “guerra” da igualdade. Podem tomar como exemplo a seleção de Portugal que há quatro anos andava a ver navios e já ganha à campeã da Europa e empata com a campeã Mundial. Foram elas, pelo mérito, capacidade e esforço, que conquistaram todo um país e a comunicação social. E deve ser assim com todo o futebol feminino. Nada imposto, mas conseguido. Porque tudo tem o seu tempo, no momento exato. 

MS: Ainda dentro da mesma linha de pensamento… apesar de se estar a celebrar o aumento substancial de espectadores dos jogos (nos estádios e através da TV) neste Campeonato do Mundo que está a decorrer, a verdade é que há uma disparidade enorme entre a versão masculina e feminina do mesmo evento. O facto de historicamente este desporto ter sido essencialmente masculino e ser ainda dirigido maioritariamente por homens (FIFA, Federações, Clubes…) ainda pesa? 

FE: Acredito que possa pesar porque o futebol feminino ainda é visto pelo prisma masculino no que diz respeito a decisões. Mas, como em tudo, o fator comparação é perigoso e por vezes injusto. Se a FIFA e UEFA não estivessem empenhadas no crescimento do futebol feminino não gastavam milhões como o estão a fazer presentemente. A nível de competições de clubes e de seleções.  Até a nível nacional. As federações têm como prioridade o feminino e a prova é que aqui na Europa, dentro em breve, os participantes na Liga dos Campeões são obrigados a ter equipa feminina, caso não a tenham.

MS: Além de tudo mais, há uma enorme disparidade entre os salários e prémios de jogo entre homens e mulheres. Desde logo a própria FIFA atribuiu 4 vezes menos dinheiro às seleções femininas pela participação num Mundial, relativamente ao que concedeu por exemplo às seleções presentes no mundial do Qatar. O que justifica isto?

FE: O que disse antes. Não podemos comparar a realidade feminina com a masculina. O que gera cada uma, porque futebol é dinheiro e daí as diferenças ainda existentes. Se alguém conseguir dizer quem no feminino pode rivalizar, por exemplo, com Cristiano Ronaldo, eu trinco a língua. Na popularidade, receitas geradas, redes sociais, sponsors etc. Mas mais do que questionar as diferenças na premiação, provavelmente, seria interessante perceber e reconhecer o aumento por exemplo de 2019 para 2023. Do último Mundial para o atual. Substancialmente mais. Não se pode é ver sempre este tema pelo prisma negativo. Como se houvesse uma conspiração para diminuir o futebol feminino. Mas factualmente é preciso melhorar as questões técnicas e táticas. A intensidade do jogo, os níveis de eficácia, o equilíbrio de forças entre todas as equipas. Há ainda muito caminho a percorrer para chegar aos níveis a que o público está habituado no masculino.

MS: Como avalias o nível de qualidade técnica, até agora observado, do desempenho das diversas seleções no Mundial de Futebol feminino?

FE: Houve uma grande evolução que se confirma a cada grande competição. Melhor técnica e tática e com índices físicos muito melhorados. Noto sobretudo que há cada vez mais jogadoras bastante jovens que se estão a afirmar mais e mais e também um crescimento notável na qualidade dos treinadores e treinadoras. É preciso uma conjugação de fatores de crescimento, que é inequívoca atualmente na esmagadora maioria dos países. Daqui a quatro anos, no próximo mundial, vamos notar muitas mais diferenças.

MS: Como vês o futuro do futebol feminino, em Portugal e no resto do mundo?

FE: Por tudo o que expliquei antes, só pode ser risonho. Com mais praticantes, competições mais renhidas, grandes espetáculos e consequentemente mais valorização, receitas e visibilidade. Aí muitos dos tabus ainda existentes cairão e o que se questiona agora fará menos sentido, numa altura em que a sociedade está mais aberta às questões do género e igualdade. Percebo a tentação das comparações com o masculino e a celeridade posta para patamares iguais, mas Roma e Paiva não se fizeram num dia. Mas foram erguidas. O futebol feminino estará à altura do masculino, brevemente. Nenhuma dúvida quanto a isso. 

Madalena Balça/MS

 

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