Luís Barreira

O significado da morte para além da guerra!

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As recentes notícias da descoberta de uma vala comum com cerca de 400 cadáveres em Izium, localidade recentemente reconquistada pelos ucranianos, onde muitos apresentavam sinais de evidente tortura, tal como o acontecido em Bucha, no Norte do país, levou-me a considerar que esta guerra da Rússia contra a Ucrânia contém elementos desumanizantes que estão muito para além dos efeitos de qualquer guerra entre exércitos opostos. Esta minha consideração não põe em causa que não existam o mesmo tipo de comportamentos em outras partes do globo, mas porque supunha que a Rússia, após um longo período de educação (dita) socialista, albergasse uma sociedade mais em conformidade com os valores humanamente aceitáveis.

Bem sei que a guerra altera os comportamentos humanos: o medo, a ira, a raiva, o pânico e algumas vezes a influência de uma loucura coletiva, acabam por atingir o consciente de alguns, transformando-os em verdadeiros monstros. Mas os valores intrínsecos apreendidos por uma educação humanista, não raras vezes se sobrepõem ao animal selvagem que a guerra propicia, protegendo-nos contra a barbárie.

Eu próprio me vi forçado a participar numa guerra, em 1972 e, embora num destacamento de engenharia cuja especialidade não era o combate, assisti a cenas cuja recordação ainda perdura na minha memória, no espaço longínquo de Cabo Delgado, na fronteira de Moçambique com a Tanzânia, junto ao rio Rovuma.

Recordo que um dia (em resultado da então chamada “operação psicológica”, que pretendia convencer o inimigo das nossas boas intenções…), no labor da construção de uma pequena vila a que chamavam Nangade, constituída por duas dezenas de pequenas casas equipadas com água e eletricidade, central elétrica, oficinas, arruamentos, etc, bem à vista das tropas da Frelimo que, do outro lado do rio, destruíam à noite o que nós construíamos durante o dia (…), obrigando-nos a dormir (…) em abrigos improvisados debaixo de terra, fomos visitados com grande alarido por uma coluna das chamadas tropas especiais africanas que nos vinham defender desses ataques.

Eram sujeitos corpulentos (penso que Macondes), irritados pelo álcool e com aspeto selvático, que exibiam as cabeças de capturados nos jipes e os dentes dos defuntos em ostensivos colares ao pescoço.

A visão daquela tropa tocou-me profundamente e muito mais do que os morteiros que zuniam durante a noite sobre as nossas cabeças. Como era possível tal transformação da natureza humana? Interroguei-me se, sujeitos às mesmas condições, não seríamos todos reduzidos ao estado selvagem?… Pensei, mas não acreditei! Não somos todos iguais e não é por causa da cor, mas sim pelos princípios e valores que nos foram transmitidos.

A esse propósito recordo e gracejo com o que me disse um empregado africano quando, acabado de chegar a Moçambique, recusei comer uma sopa num restaurante porque tinha uma mosca. E ele respondeu-me com um largo sorriso: “nos primeiros 6 meses patrão não come a sopa, nos segundos 6 meses tira a mosca e come a sopa e nos terceiros 6 meses come a sopa com mosca e tudo!” Mas eu, até hoje, nunca quis comer sopa com mosca!…
Voltando ao tema da selvajaria praticada pelas tropas russas na Ucrânia, confesso que pela prática repetida destes atos horrendos e por um conjunto de circunstâncias comportamentais deste povo eslavo, oriundo da Europa Oriental, sou levado a admitir que, para os russos, com uma longa história de conquistas, invasões e duas guerras mundiais com muitos milhões de mortos, mas mais propriamente para as camadas dirigentes deste povo, a morte de um ser humano não tem o mesmo significado que tem para nós ocidentais.

Da brutalidade do antigo regime czarista para com as suas populações, à insensibilidade do regime soviético, sob a égide de Stalin, contra milhões dos seus camponeses, a elite russa foi sempre impiedosa até para com a sua própria “numenclatura”, desde a morte de muitos dos seus generais e dirigentes oposicionistas com “ataques de coração”, até aos dias de hoje com a “estranha” morte de já nove empresários russos que se manifestaram contra a guerra na Ucrânia, entre eles: Ivan Pechorin, o principal responsável pela Corporação para o Desenvolvimento do Extremo Oriente e do Ártico (“afogou-se” em Vladivostok); o presidente da Lukoil, Ravil Maganov, morreu no início de setembro (depois de “cair da janela” de um hospital em Moscovo”); o milionário Sergei Protosenya, em Lloret de Mar (Espanha), morto por “suicídio” (encontrado enforcado na sua residência, juntamente com a mulher esfaqueada); o oligarca Vladislav Avayev, encontrado morto por “suicídio” (no seu apartamento em Moscovo, juntamente com a sua esposa e filha de 13 anos); o bilionário Vasily Melnikov, executivo da gigante empresa de equipamentos médicos MedStom, “suicidado” (ao lado da esposa, Galina, e dos dois filhos menores, no seu apartamento na cidade russa de Ninzhni Novgorod) Andrei Krukovsky, diretor da estância de ski Krasnaya Polyana, frequentada por Putin, foi encontrado morto (após uma “queda de um penhasco”) e outros destacados dirigentes ligados à gigante estatal Gazprom e à Lukoil “estranhamente” mortos.

Se a morte de um ser humano é um fator irrelevante para estes dirigentes russos, pelo que não terão qualquer preconceito moral em torturar e matar todos os que se lhes opõem, utilizando todas as esfarrapadas justificações, também o ódio que manifestam ao ocidente e a culpabilização de todo o mal que lhes acontece, não é uma novidade da atualidade. Também se manifestou na Primeira Guerra Mundial quando se uniu à Tríplice Entente, formada por Alemanha, Áustria-Hungria e o Império Turco-Otomano, contra a Tríplice Aliança, onde se encontravam a França e a Inglaterra e na Segunda Guerra Mundial quando Stalin, em 1939, assinou com Hitler o pacto de não-agressão Alemão-Soviético, que dividia secretamente as nações independentes da Europa Oriental entre essas duas potências.

A história destes acontecimentos é longa e plena de selvajaria que este pequeno texto não pode conter, mas o significado da morte entre estas nossas duas sociedades é indubitavelmente diferente entre les Uns et les Autres!…

Luis Barreira/MS

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