Aida Batista

Tão longe e tão perto

 

Eis que chegaste, e cada coisa recomeçou o gesto interrompido. Isabel Meyrelles, in “da outra margem”

 

 

Se olharmos bem para o pedaço de terra que nos coube como país, logo percebemos que o seu formato retangular – encaixado na ponta ocidental desta jangada de pedra, que dá pelo nome de Península Ibérica -, apenas nos oferece o mar como saída. Outra forma não teríamos de crescer que não fosse a de ir fixar os pés noutro lugar, fora daquele que nos foi dado por nascimento. E fomos muitos a fazê-lo! Por isso, a celebração do Dia de Portugal não faria sentido se restringíssemos os festejos apenas a esta faixa ibérica, sem os estendermos a todos os que, galgando fronteiras, se foram espalhando por muitas outras geografias.

Neste ano de 2023, ganha particular significado a comunidade instalada no Canadá, já que se celebram os 70 anos da chegada oficial dos portugueses a este país. A fim de recordarmos esse dia, reproduzo um excerto da crónica “Ano novo, vidas velhas”, que faz parte do conjunto das 70 que, reunidas em “Bicicletas de Toronto”, pretendem evocar estas celebrações.

“Foi por mar que vieram, cavalgando a espuma da esperança, na crista das ondas que o barco movido a fome atravessava, como se rompesse a bolsa de águas de um futuro pronto a nascer. Durante a viagem, vomitaram-se muitas saudades, de cada vez que o balanço do navio desafiava o equilíbrio dos afetos deixados, e provocava enjoos de memórias desfocadas. Foi a fome que os fez embarcar.

A fome verdadeira, aquela que é feita de estômagos a roncar vazios, por nada terem levado à boca; a fome do tão pouco que havia (quando havia) para repartir por muitos, gesto que desencadeava outras e novas fomes. A fome do mundo por conhecer, que estaria para além do monte que sempre servira de linha do horizonte; a fome de partir, porque se estava cansado de viver a miséria repetida, de um dia e mais outros, sempre iguais; a fome de desafiar a ousadia, porque pior do que se estava não podia haver; a fome do saber, negado pelo analfabetismo gerado em silêncios, que a palavra é uma arma perigosa; a fome de dar o salto para o desconhecido, quando o conhecido já não os satisfazia; a fome de dar aos filhos abundâncias, de que tinham ouvido falar, mas nunca haviam conhecido.

Foram todas estas fomes que se juntaram, a acenar despedidas do convés de um barco chamado Satúrnia, a afastar-se do cais de partidas onde se amontoavam os que ficavam. Por coincidência ou não, e sem que os passageiros soubessem, Saturno é o deus romano do tempo, que, com o receio de ser destronado, devorava os filhos à nascença – tal como Portugal matava os seus -, tendo-se salvado apenas um, por via de uma artimanha de sua mulher Reia. Expulso da montanha sagrada, instalou-se no Capitólio e aí formou uma aldeia a que deu o nome de Satúrnia. Tomando a mitologia como metáfora, diria que o navio Satúrnia mais não foi do que essa primeira aldeia flutuante portuguesa, habitada por Continentais e Ilhéus, que lançou âncora no porto canadiano de Halifax, a 13 maio de 1953. Se, nesta odisseia, o nome do barco ganha uma carga simbólica, o mesmo se passa com a data da chegada, 13 de maio, tão ligada ao culto mariano.

Maria, segundo os crentes que a invocam, haveria de ser a mãe protetora para os que tinham deixado a pátria madrasta, na expectativa de um outro colo acolhedor.”

Foi a partir deste colo libertador que alimentaram a esperança de serem cada vez mais e maiores, multiplicando-se nas comunidades pujantes que, em mais um dia 10 de junho, hão de desfilar com o maior orgulho as marcas da Portugalidade.

Aida Batista/MS

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