Aida Batista

“Percebia que ser imigrante era uma construção do imaginário, uma condição social, uma relação de submissão.” – Patrícia Moreira, in A Bagagem da Imigração

 

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Os movimentos de extrema direita crescem por todo o mundo. A sua agenda ideológica é contra a emigração, em especial se ela for originária de determinados países. Como seria previsível, também chegaram a Portugal. Contudo, no nosso país, tal posição é difícil de entender, tendo em conta que, estruturalmente, nós somos um povo que tem a sua matriz genética assente em cais de partidas.

Tendo a água como fronteira, foi por caminhos marítimos que voltámos as costas ao berço onde nascemos, em busca de outras geografias onde nos instalámos, erguemos fortalezas e fronteiras, considerando-as nossas. Fizemos do mundo uma laranja, cortámo-la ao meio com a faca a que chamámos meridiano de Tordesilhas, partilhando-a com outra potência marítima da época.

Desde tempos imemoriais, segundo o cronista Fernão Lopes, Lisboa foi a “grande cidade de muitas e desvairadas gentes”. Muito antes ainda, o território que é hoje Portugal foi habitado por Fenícios, Gregos, Cartagineses, Romanos, Suevos, Visigodos e Árabes. Mais tarde, recebemos negros, índios, asiáticos, e com todos eles nos misturámos. Se fizermos um estudo laboratorial do nosso genoma, onde encontraremos o ADN do verdadeiro português? E como se define biologicamente um português?

Quando se prepara uma manifestação contra a imigração (como a que decorreu no passado sábado, dia 3), em cujos cartazes se lia “Devolvam Lisboa aos Portugueses”, a primeira pergunta que me ocorre é: “Quem são esses portugueses a quem temos de devolver a cidade?”

Eu sou portuguesa, é esse o adjetivo que coloco sempre que tenho de preencher um formulário em que me é pedida a nacionalidade. Porquê? Porque nasci em Portugal e foi o lugar de nascimento averbado na minha certidão que me garantiu esse direito. Mas, além desta nacionalidade, poderia ter adquirido outra, como aconteceu a tantos dos nossos que se viram obrigados a deixar o país, pelas mesmas razões que o fazem os que agora nos procuram. Muitos deles são já portugueses como nós, à face da lei, com os mesmos direitos e deveres. Outros, por razões de natureza burocrática, ou porque ainda não preenchem todos os requisitos para o serem, mantêm a sua situação suspensa da boa vontade do atendimento que lhes calha em sorte.

A minha nacionalidade é definitiva e nunca poderá ser alterada pela cor da minha pele, nem por qualquer crença ou religião que professe. Temos portugueses com as mais variadas aparências (brancos, negros, mulatos, indianos, asiáticos, loiros, ruivos, de cabelo liso, aos caracóis ou de carapinha) como sempre aconteceu, basta que se estude um poucochinho de História.

É por isso que dói admitir que haja quem queira definir quem são os verdadeiros portugueses, querendo, com tal argumento, contrariar toda e qualquer vaga migratória que, nos últimos anos, se tem instalado em determinada zona de Lisboa, Praça Martim Moniz e ruas adjacentes, que, por ironia, fazem parte do bairro da Mouraria. O topónimo não engana e remete-nos para uma Lisboa que, outrora, foi moura.

Mais absurda ainda foi ouvir a exigência de que quem quiser emigrar para Portugal terá de dominar a língua portuguesa. Lembrei-me dos nossos emigrantes portugueses que, anos a fio, partiram para países sem conhecerem uma única palavra da língua que por lá se falava. Ri-me de tantos episódios cómico-trágicos que me contaram, dos estratagemas que usavam para que os seus interlocutores os entendessem e de como a linguagem corporal e gestual superavam a ausência de vocabulário.

Por coincidência, nessa mesma tarde, assisti ao lançamento de “Bagagem de Imigração”, de Patrícia Moreira, nascida em Lisboa, mas filha de imigrantes cabo-verdianos. A sala estava cheia, apesar de a manifestação ter condicionado a ida de algumas pessoas, já que o receio passou de boca em boca. Uma voz na plateia, contudo, teve a coragem de gritar:

– “Estamos na nossa terra, não vamos sair daqui!”

Aida Batista/MS

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