Aida Batista

O senhor seis milhões

jorge ferreira

 

Saímos do corpo quando nos contam histórias.
Mia Couto

 

Gosto sempre de estar atenta ao que se passa no meu país e no mundo. Por isso, sou fiel seguidora dos telejornais. No intervalo de dois blocos noticiosos, ouvi anunciar que no programa “Júlia”, iria ser feita uma entrevista a “Jorge Ferreira – da pobreza dos Açores ao sucesso nos EUA.” Interessada por estórias da emigração, ouvi esta com a maior atenção.Confesso que não conhecia nem o homem, nem o músico, mas, desde logo, fiquei fascinada com o seu percurso de vida. O que mais me prendeu à narrativa, para além da simpatia natural do entrevistado, foram os pequenos detalhes, aqueles instantâneos que retratam um Portugal que, felizmente, a atual geração já não conheceu.

Jorge Ferreira nasceu na Bretanha (Ilha de S. Miguel), numa freguesia que definiu com seis casa para cima, seis para baixo, seis para um lado e seis para o outro, como se a meia dúzia fosse a medida para definir o universo da pequenez onde vivia. Andou na escola descalço, sentindo nos pés o calor vulcânico da terra que o vira nascer, até aos 12 anos, quando calçou o primeiro par de sapatos. Habituado à liberdade de sentir os pés livres de apertos, teve de aprender a caminhar calçado.

Foi nesta idade que a sua saga da emigração começou, mas só saiu dos Açores com 13 anos já feitos. O avião que o levaria com os pais até à América saía do aeroporto de Santa Maria, mas, como o de Ponta Delgada tinha apenas pista relvada, perdeu voos sucessivos devido à chuva que impedia descolagens ou aterragens. E assim acabou por celebrar mais um aniversário na ilha, até que chegasse o tão desejado dia da partida.

Se a chuva havia criado atrasos na partida, à chegada, foi um nevão em Boston (cidade do destino) que os obrigou a aterrar em Nova York, onde não tinham ninguém. Seguiram depois de autocarro até Fall River, onde uma tia se surpreendeu com o atraso. Ao prosseguir a narrativa, Jorge Ferreira não consegue conter as lágrimas. A emoção toma conta dele, quando recorda a solidariedade com que foram recebidos na comunidade. Vizinhos e conhecidos visitavam-nos levando nas mãos um “envelopinho” com dinheiro para as primeiras necessidades, e, na boca, a pergunta sobre que peças de mobiliário lhes faziam mais falta.

Nos Estados Unidos frequentou a escola até aos 16 anos, mas, assim que acabavam as aulas, ia trabalhar, pois era preciso pagar as passagens que lhes haviam proporcionado o passaporte para uma vida melhor. Trabalhou na agricultura, numa fábrica de embalar carnes, noutra de fazer casacos, até que acabou na construção civil a sacudir o corpo agarrado a um martelo pneumático.

Na ilha, aos cinco/seis anos, aprendera a tocar harmónica com o vizinho, o instrumento mais barato a que podia ter acesso, mas, com 11 anos, começou a tocar trompete. Os conhecimentos de música que levara na bagagem permitiram-lhe entrar para uma filarmónica, e, mais tarde, fazer parte de uma banda que atuava em casamentos, batizados e outras festividades, como a matança do porco. O sucesso que ia obtendo nas atuações – chegou a fazer sete apenas num fim de semana – permitiram-lhe começar a viver apenas da música.

Um dia é desafiado a cantar. De início, de microfone numa mão, não sabia o que fazer com a outra; mas, tal como os pés tinham aprendido a conviver com os sapatos, também as mãos aprenderam a comportar-se em palco. O êxito foi tal que nunca mais parou. Compôs mais de 600 canções, que atingiram 6 milhões de vendas e o levaram a conquistar 28 discos de ouro e 14 de platina.

O menino que deixou um país, onde ainda era obrigatório ter licença para acender um isqueiro, acendeu faróis de sucesso deste e do outro lado do mar.

 

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Pode ver a entrevista em https://sic.pt/programas/julia/a-historia-de-vida-emocionante-do-cantor-jorge-ferreira-so-aprendi-a-andar-com-sapatos-aos-12-anos/

Aida Batista/MS

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