Aida Batista

O dia da libertação

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Crédito: José Carlos Carvalho

Chamaram ao 1º de outubro da passada semana, o Dia da Libertação.

Dito assim, remete-me de imediato para o Dia D, quando os soldados das forças aliadas desembarcaram nas praias da Normandia para a grande ofensiva contra as tropas nazis. A palavra libertação transporta-me sempre para situações em que um país, uma comunidade ou uma só pessoa vivem sob o jugo de outrem. Ou, então, para prisioneiros que, após indulto ou cumprimento da pena, têm direito à liberdade, porque é com a privação da mesma que se redimem perante a sociedade. Curiosamente, ou não, também me leva até aos drogados, prisioneiros de um vício de que é difícil libertarem-se. Mas não foi nada disso que aconteceu. A designação ficou tão simplesmente a dever-se à abertura das discotecas.

Estando a palavra libertação associada à falta da liberdade, parece estranho que, desta vez, esta fique ligada à abertura dos estabelecimentos noturnos – maioritariamente frequentados por jovens -, onde se pode dançar, consumir álcool e, acima de tudo, conviver. Se pensarmos bem, é lícito aceitarmos que os jovens precisavam urgentemente da diversão e do convívio, que, apesar de fazer parte do seu normal crescimento, lhes esteve demasiado tempo negado impedindo-os de se encontrarem com os amigos.

Foi mais de um ano a verem-se nos ecrãs dos computadores e dos telemóveis, foram muitas conversas fiadas, foram milhares de mensagens trocadas, mas, como ouvi alguém dizer: “nada disto substitui um beijo na boca!”

Começamos a sair lentamente de um período em que vivemos tempos estranhos, tal  foi a estranheza de, de um momento para o outro, nos vermos privados das coisas mais simples e gratuitas que fazem parte da felicidade dos nossos quotidianos. Intencionalmente, usei o advérbio lentamente, porque ainda não recuperámos o beijo. Agora veem-se mais os abraços, dados com o rosto de lado, evitando assim a proximidade das fontes que estiveram na origem da propagação e dos contágios. Os cumprimentos ainda não se normalizaram, mas já é muito bem sentir o toque de outro corpo, chegue ele na forma de gratidão, amizade ou amor.

Talvez não tenha sido por acaso que, esta segunda-feira (4), o prémio Nobel da Medicina tenha sido atribuído a David Julius e Ardem Patapoutian, dois investigadores na área dos recetores sensoriais, entre os quais ganha particular relevo o tato.

Não tarda, teremos estudos sobre as sequelas resultantes do tempo vivido com a privação deste sentido. Do quanto nos fizeram falta um beijo apaixonado ou o mero cumprimento de amizade; o amplexo de um abraço, que chega até às costas e as acaricia de cima para baixo e vice-versa; o ombro amigo onde chorar a alegria ou o desespero; o aperto de mão que tanta energia transmite quando precisamos de força para prosseguir, tudo aquilo que contraria o verso do poeta Manuel Alegre, permitindo-nos dizer que “É possivel viver sem fingir que se vive”.

Não foram ainda levantadas todas as restrições, não nos é ainda possível ser “livre livre livre”, mas rasgamos já um caminho que parece devolver-nos à normalidade, com a consciência de que, a partir de agora, nada nas nossas vidas pode ser dado como adquirido.

“Toda a libertação depende da consciência da servidão, e o surgimento dessa consciência é sempre dificultado pela predominância de necessidades e satisfações que, em grande parte, se tornaram próprias do indivíduo”, afirmou Herbert Marcuse, filósofo e sociólogo alemão, nascido em 1898. Os nossos jovens apenas se estão a libertar da sua consciência de servidão, fazendo valer as suas necessidades e satisfações.

E não há necessidade maior do que aquela que se prende com o convívio daqueles a quem queremos bem.

Aida Batista/MS

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