Aida Batista

“Habito-me no meio das palavras.” – João Damasceno, in Corpo Cru

old-vintage-antique-typewriter-2023-11-27-05-29-44-utc

 

Há atividades sazonais, há empregos sazonais, há viagens sazonais e, em fevereiro, há uma migração sazonal, antecedida de trocas de conversas, mensagens e e-mails. E esta sazonalidade fica a dever-se ao evento que se realiza na Póvoa do Varzim – As Correntes d’Escritas.

Aqueles que as frequentam, com a regularidade de quem vai a uma romaria, começam a contatar uns com os outros, para saber quem vai, e ficar a conhecer as razões dos que não podem ir, quase sempre a contragosto. Combina-se a escolha dos hotéis, resultante da cumplicidade que, durante anos, se foi tecendo entre grupos.
A agenda de cada um fica pendente da contagem dos dias, e, qualquer compromisso, que possa vir a calhar naquelas datas, é de imediato cancelado. Os frequentadores habituais bloqueiam aquela semana e não permitem que nada lhes retire o prazer de viajar até ao evento literário mais importante do país. Há quem se dirija para uma estância na neve, há quem queira congelar o frio do calendário e parta uma semana para as Caraíbas e, depois, há os que marcam férias balneares para o mar da Póvoa, a fim de ouvirem e acatarem as vozes dos banheiros convidados, portadores de técnicas diferentes na forma como nos fazem mergulhar nas palavras, dependendo do mote da onda que lhes é dada. Alguns, quando o recebem, sentem que lhes calhou um mar chão, sem grande dificuldade de navegar; outros, porém, apanham com ventos procelosos que lhes exigem um exercício de equilíbrio bem mais difícil de manter.

Este ano, as Correntes da Póvoa ganham uma notoriedade especial porque celebram 25 anos consecutivos de realização. Fica-lhes associado um marco altamente simbólico, porque, no ano em que se celebra meio século de liberdade, as Correntes atingem um quarto de século de maturidade. E se a Revolução nos devolveu a livre expressão do pensamento, a maturidade das Correntes permitiu-lhes crescer em qualidade e quantidade (tanto do lado dos participantes como dos espetadores), ao ponto de extravasarem os espaços onde até hoje decorreram. E se as Correntes estão em festa, o mesmo se passa com a casa onde nasceram –Póvoa de Varzim – que este ano celebra igualmente o 25º aniversário de elevação a cidade.

Em ano de celebrações vale a pena recordar o quanto mudou durante estas duas décadas e meia.
Nos primeiros anos, alguns dos autores convidados, em especial aqueles que provinham de países com mais dificuldades de acesso às tecnologias, liam textos escritos à mão. Hoje há ainda quem o faça, mas por razões bem diferentes. As Correntes não são feitas apenas de mesas redondas, lançamentos de livros, sessões de música, de cinema e exposições, mas também de noitadas de copos e divertido convívio. É natural, por isso, que alguns dos intervenientes, não tendo tido tempo de preparar a sua intervenção (confessam-no com naturalidade), rabisquem alguns dados numa folha de papel para depois os desenvolverem na hora da comunicação. Tal solução em nada diminui o conteúdo do exposto, pois, vezes há em que o improviso criativo suplanta um texto previamente elaborado.

Lembro estes registos manuscritos, porque no passado dia 23 de janeiro se celebrou o Dia da Escrita à mão. Estou certa de que, pesem embora todos os novos suportes digitais, há ainda gente da velha guarda que continua a elaborar os seus textos à mão, como se a inspiração conhecesse apenas o circuito que vai diretamente da mente para a caneta. Paulina Chiziane, por exemplo, dizia que precisava da mão para ativar o pensamento. “Para pensar preciso de ter a mão. Se a minha mão não mexe numa caneta, a ideia vem, mas não é aquela que eu quero”.

Eu, que ainda funciono como a Paulina, a ideia “que vem e quero” é a de, mais uma vez, participar nas bodas destes habitantes das palavras que mantêm a fidelidade do juramento proferido.

Aida Batista/MS

Redes Sociais - Comentários

Artigos relacionados

Não perca também
Close
Back to top button

 

O Facebook/Instagram bloqueou os orgão de comunicação social no Canadá.

Quer receber a edição semanal e as newsletters editoriais no seu e-mail?

 

Mais próximo. Mais dinâmico. Mais atual.
www.mileniostadium.com
O mesmo de sempre, mas melhor!

 

SUBSCREVER