Aida Batista

Correntes escritas no mar

 

povoa varzim - milenio stadium

 

A bela razão de ser dos postais é a de se contentarem em não ser carta, fotografia ou memória.
Carolina Bettencourt, in “Quando a casa é escrita no mar”

 

 

Estamos em plena semana das Correntes. Basta dizer, escrever “Correntes” que já não é preciso acrescentar mais nada. Todos sabem de que evento se trata – as Correntes d’escritas.

A Romaria para a Póvoa de Varzim começa a formar-se muito tempo antes, como os pequenos ribeiros que, lentamente, vão engrossando os leitos para se transformarem em rios de vontades que desaguam no mar da Póvoa. São os telefonemas, as mensagens e os e-mails trocados entre os habituais militantes do evento a perguntar: vais este ano? já te decidiste? encontramo-nos lá? e fulano? e beltrana? há muito que não sei nada deles!

Fala-se da viagem à Póvoa como da ida a um santuário, onde as palavras – sob a forma de prosa, poesia, música, cinema, teatro e até silêncio – são sagradas; e consagrados os que as produzem e reproduzem, como quem profere uma oração.

Ano após ano (exceto durante o interregno que a pandemia provocou) acontece o mesmo: todos os caminhos vão dar à Póvoa. Pelas redes sociais, vamos descobrindo companheiros de jornada: mais um amigo ou um conhecido. Depois, para que certas particularidades das conversas não se tornem públicas, passa-se às mensagens privadas. Acabamos por descobrir que vamos ficar hospedados no mesmo hotel, no hotel ao lado ou noutro da vizinhança. E a vizinhança, assim que tudo começa, salta do hotel para a sala do teatro Almeida Garrett, onde decorre grande parte do evento, para o toldo da feira do livro, para o café da bica social – após a que já foi tomada ao pequeno-almoço -, para restaurantes que saem da esfera da organização, sempre que se quer ter um convívio mais pessoal. É a alegria dos encontros e reencontros que, no meu caso, é ainda mais desejado, porque a missão de voluntariado, que fiz à Guiné-Bissau, me impediu de ter estado presente no último ano.

Quando faltamos, somos sujeitos a um escrutínio, como se faltar fosse proibido, quase um pecado. Não faltam as perguntas: não apareceste? não pudeste vir? aconteceu alguma coisa? E fica aquela sensação tão terna de que passámos de espetadores a uma família, em que o grau de parentalidade varia conforme a relação de pertença a uma genealogia, cujas cédulas de nascimento são lavradas no papel da árvore que nos abriga.

E a Póvoa suga-nos a todos como um movimento centrípeto que, no seu rodopio, nos atira para o centro do verbo onde tudo começou. Mesmo quando os motes mudam, não se alteram os desafios, nem falta imaginação a quem os enfrenta. E nós evitamos atrasos, porque sabemos que a disputa por um bom lugar sentado é como a dança das cadeiras, em que é importante estarmos atentos ao compasso da saída e das entradas das figuras que queremos ver e ouvir.

No programa, há sessões justapostas, lançamentos de livros e conversas à mesa. Temos de escolher. Às vezes, enganamo-nos e o que excluímos acaba por ser mais interessante do que aquilo a que fomos assistir, dizem-nos! Que importa? O saldo é sempre positivo, porque saímos de lá intelectualmente mais ricos do que quando entrámos.

Se a vida é feita de rituais, este é um dos que se entranhou em mim. Fora eu serpente, que mudaria a natureza das coisas. Decretaria que se não largasse a pele, porque é nela que ficam tatuados todos os mitos e ritos que nos definem. E há um que sempre pratico – enviar um postal aos meus netos, com o carimbo do quanto me marcou naqueles dias.

Ao contrário da autora da epígrafe, eu acredito que, no futuro, eles serão sempre “uma carta, fotografia ou memória” da escrita com que serei recordada.

Aida Batista/MS

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