Aida Batista

Aquele abraço

 

ainda batista - milenio stadium

 

O abraço é uma longa conversa que acontece sem palavras. Tudo o que tem de ser dito soletra-se no silêncio, e ocorre isto que é tão precioso e afinal tão raro: sem defesas, um coração coloca-se à escuta de outro coração. José Tolentino Mendonça

 

 

Fazes parte do nosso grupo de voluntariado e, como todos nós, já fizeste missões na Guiné, o país que, como palavra-chave, serve de senha à nossa amizade. A determinada altura, e por sugestão de um dos nossos, nasceu um novo projeto, ao qual nos dedicámos nos três últimos anos, na esperança de o vermos crescer e dele brotar os tão desejados frutos.

Como soldados de boa vontade, estamos sempre atentos, dispostos e a postos para uma nova chamada, com o equipamento necessário sempre pronto, como é exigido a qualquer voluntário: disponibilidade, empenhamento, entrega e um capital de saber acumulado, ao longo das nossas já longas vidas, a que chamamos dádiva.
Tu, mais uma vez, estavas pronta para partir. Acabaras de dar o sim, quando recebeste a notícia que te travou a descolagem. Sem preveres e nem nunca o teres desejado, foste informada de que, da tua bagagem pessoal, constava um intruso com quem não poderias viajar. Camuflara-se no teu corpo, mansinho e silencioso, de tal modo que não havias dado por ele. Deram-lhe um nome, mas o teu desconcertante pragmatismo não impediu que o nomeasses. Exigia-se, contudo, que fosses sensata e iniciasses os tratamentos para dele te libertares o mais depressa possível. E o que é “depressa” nestes casos? Não sabias, mas ficaste a cuidar dele, durante meses, longos para ti e para nós, que deixámos de te ver no ecrã dos nossos encontros, embora fôssemos acompanhando, à distância, o teu estado de saúde.

Melhoravas, mas não ainda ao ponto de poderes iniciar um outro projeto “on-line” para o qual também te disponibilizaras. O colega António, generoso como sempre, prontificou-se a substituir-te.

Continuavas a enviar-nos mensagens, mais animadas, mas, como num palimpsesto, descobríamos as marcas de uma outra escrita que o tempo não apagara. Subliminarmente, sentíamos que estavas a precisar urgentemente de um abraço. Primeiro, éramos apenas dois, mas, a convite teu, o círculo alargou-se porque a tua fome de abraços era proporcionalmente direta à fartura das ausências.

E fomos dar-to, de vários pontos do país, como se houvesse uma geografia do abraço e também esta contasse. E, provavelmente, contou porque ficaste a saber que não há distância que impeça um abraço de viajar. E tu, a cada um de nós deste “aquele abraço”, como num samba de braços a lembrar a música de Gilberto Gil “Quem sabe de mim sou eu/ aquele abraço” porque, seguindo o compasso do mesmo músico, “Meu caminho pelo mundo/ eu mesmo traço”. E continuámos, um a um, a percorrer mais versos do poema, pois estamos em fevereiro “Aquele abraço/ todo o mês de fevereiro/ aquele passo.” O brilho dos teus olhos e o sorriso que te iluminava o rosto, emoldurado pelo teu inconfundível cabelo ruivo, devolvia-nos a alegria de quem sentia, de facto, a falta de um abraço. Como aquele que outro poeta, Mário Quintana, descreve: “coração com coração, tudo isso cercado de braço”, de dois, que formam o laço da amizade.

Quando nos despedimos, repetimos o abraço, ainda com muito mais força, aquela que te queríamos deixar para venceres a última etapa. E, voltando a Mário Quintana, e à forma como ele compara os braços a dois pedaços de fita que formam um laço, assim nos despedimos:
“E saem as duas partes, igual meus pedaços de fita, sem perder nenhum pedaço.
Então o amor e a amizade são isso…
Não prendem, não escravizam, não apertam, não sufocam”, mas fazem dizem presente à urgência das chamadas.”

Aida Batista/MS

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