Aida Batista

A síndrome do papel em branco

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Pomba branca, pomba branca, já perdi o teu voar.
Música composta e interpretada por Max

 

 

Já todos ouvimos falar da síndrome do papel em branco, angústia por que passa quem escreve – ter a folha à sua frente e não saber como começar. Procurar no vazio da mente e nada achar para o preencher. Percorrer um vasto vocabulário e, no meio de tantas palavras, não saber por qual delas começar. Escrever frases, umas atrás das outras, e rasurá-las por não lhes encontrar o tom certo, sentindo a ausência da harmonia musical que a escrita exige.

E o papel continua em branco, a cor da paz, em perfeito confronto com os tempos que vivemos. Como descobrir um léxico pacifista, quando a toda a hora somos confrontados com o ruído das pazes que enterram ou desenterram corpos das valas comuns, em caixões de plástico negro, para poderem ser identificados; com o horror dos cadáveres abandonados à beira das ruas e estradas, como se fizessem parte de uma instalação artística macabra, cenário de um filme de terror; com gente que começa a sair das catacumbas dos abrigos e caves onde viveu alimentada de esperanças.

Os corpos dos mortos falam e dizem muito, garantem todos os investigadores forenses. Através deles, é possível conhecer a forma como morreram: se foi em própria defesa, se foram torturados, se levaram apenas um tiro na nuca ou foram sujeitos a outras atrocidades. Os corpos falam, mas as suas vozes foram silenciadas para sempre, na tortura pela calada ou da execução sumária. São vozes de homens, mulheres e crianças que, de forma arbitrária, foram sujeitos a este jogo de azar ou sorte. Mas como se pode falar de sorte quando os que sobreviveram sentem a culpa de estarem vivos? Como se pode viver a alegria de estar vivo, depois de se ver ou saber dos horrores a que foram sujeitos familiares, vizinhos e amigos? Impotentes por nada terem podido fazer, não conseguem sorrir porque a dor lhes congelou os rostos. Alguns, testemunhas do muito que aconteceu, tentam descrever a sua resistência, em narrativas intercaladas de silêncios por causa do nó que se atravessa na garganta ou das lágrimas convulsivas que os impedem de continuar. Por pudor, voltam as costas, como se fosse impossível esconder o sofrimento que lhes contorce os corpos.

Quando somos atingidos por uma desgraça facilmente solúvel ou uma doença daquelas que nos tira o chão, é normal perguntarmo-nos: porquê eu? Nas entrevistas que ouvimos, é como se toda a trama se voltasse do avesso, e com frequência dizem: porquê eles?

Como se preenche uma página em branco, quando acomodados no conforto das nossas casas, nos interrogamos pelo facto de não existir um qualquer mecanismo internacional que tenha o poder e o dever de intervir em caso de ajuda humanitária? Como não ter sido prevista, na jurisprudência internacional, que uma coluna militar, constituída por forças da paz, pudesse escoltar os camiões que tentam chegar a uma população cercada, doente, faminta, sem água, sem luz, sem aquecimento, onde diariamente morre por falta de assistência?

E o papel branco, onde continuo a escrever, vai perdendo a cor e começa a tornar-se negro, a cor do luto por fazer, pois nem todos tiveram direito a um corpo para velar. Com esta folha negra ao peito seria presa por um zeloso polícia, caso tivesse a ousadia de com ela circular numa cidade russa. Prenderam, há dias, um jovem ativista porque, num gesto de protesto, simplesmente caminhava na rua com uma folha branca ao peito, o símbolo da paz. No caso do meu, negro da dor dos horrores revelados, seria a cor da morte. Como tal, uma acusação e denúncia de que estamos perante um homem para quem a pomba branca há muito deixou de voar.

Aida Batista/MS

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