Aida Batista

A memória de um pregão

 

Tudo o que a memória amou já ficou eterno.
Adélia Prado

 

– Bolinhé! Bolinhé! Com creme ou sem creme!

Os pregões há muito caíram em desuso, mas este é dos poucos que se mantém, ano após ano, nas praias ao Sul para onde invariavelmente rumo todos os anos, em agosto. 

Se o cheiro a fritos e canela me traz o Natal, a bola de Berlim, apregoada pelo areal, anuncia-me sempre a praia e as memórias que lhe estão associadas. 

Eram as viagens longas até ao destino, alfa e ómega das férias, muito antes da autoestrada desligar os viajantes do Alentejo profundo, reduzindo-o a pequenos lugarejos brancos espalhados na paisagem. Era o farnel preparado de véspera, para ser comido num qualquer merendeiro improvisado – a exigir um desvio da estrada nacional -, onde não faltava o queijo e as lascas de presunto metidos em pedaços de pão caseiro, os pastéis de bacalhau, o frango frito panado e, como sobremesa, o bolo fatiado e o melão fresco em talhadas. Eram as cassetes a debitar os mais recentes êxitos nacionais e internacionais. Eram as conversas dentro do carro de vidros abertos – poucos estavam equipados com ar condicionado -, a mitigar a distância de tanto caminho por percorrer. Era a impaciência dos mais pequenos que amiúde perguntavam se ainda faltava muito. Era o cheiro a maresia a avisar as narinas do fim da viagem. Era a alegria da chegada, o desentorpecer das pernas e o reencontro com os que iam chegando num abraço entre irmãos, sobrinhos e primos, cujas idades se confundiam. Era o acomodar nas diferentes casas que, pela proximidade, davam a sensação de bairro de férias. Era a romaria diária para a praia, onde os primeiros a chegar iam espalhando toalhas no areal para demarcar território junto aos chapéus-de-sol que cada família levava. Eram as brincadeiras partilhadas por todos, sem olhar a idades. Eram as primeiras aprendizagens no domínio do mar para os que aí começaram a nadar, sem nada saberem do teorema de Arquimedes. Eram as construções na areia, consoante a imaginação e o jeito de cada um para transformar a areia molhada em paredes sólidas, ou os baldes cheios de água que traiçoeiramente se lançavam sobre os que ousassem dormir uma sesta. Eram as idas a terras de Espanha no ferry, só porque sim, ou para se poder dizer que se havia atravessado o Guadiana e ido ao estrangeiro. Eram os serões animados nas esplanadas, depois do jantar, a saborear gelados de diferentes cores e sabores, como recompensa de final do dia. Eram os dias a escoar-se, num fim anunciado, mas com a convicção de que no ano seguinte haveria mais. Eram os carros atafulhados de tralha a anunciar a viagem de regresso. Eram as intermináveis despedidas, na hora de cada um seguir para as suas casas, deixadas aquelas que haviam sido de todos por uns dias.

O curso dos dias, em sucessivas camadas, foi-se acumulando na vida dos mais pequenos. Cresceram e alguns já constituíram as suas próprias famílias, passando a dividir-se entre dois clãs familiares. O núcleo alargado foi encolhendo para poder satisfazer as escolhas de um lado e do outro, de forma natural, sem conflitos. A unir-nos, a eterna memória apregoada às velhas e novas gerações: “Bolinhé! Bolinhé! Com creme e sem creme!” 

Os vendedores, de caixas suspensas nos braços, continuam a circular por entre os chapéus, aproximando-se estrategicamente daqueles onde há crianças. Mas não são apenas as crianças que os chamam, já que os adultos não fogem à tentação de repetir as práticas da sua infância. Porque comer uma bola de Berlim numa qualquer pastelaria não é a mesma coisa do que saboreá-la numa praia. É um hábito tão arreigado que faz parte de nós, como se as nossas praias perdessem identidade se elas não existissem.

Aida Batista/MS

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