Opinião

A medida do nosso chão

“Abraço plenamente os países aonde cheguei, sem nunca abandonar aqueles de onde parti.” - Amin Malouf

 

A medida do nosso chãoNão vejo muita televisão, no sentido de que raramente me sento a ver filmes em casa, fico presa a séries ou sigo alguma novela, tendo-me fidelizado apenas nos telejornais, que diariamente procuro seguir, e a um ou outro programa de comentário político.  No entanto, sempre que estou na cozinha, entregue a determinadas tarefas domésticas, tenho a televisão ligada, mais para ouvir uma voz e me sentir acompanhada. Foi precisamente numa dessas manhãs – em que os canais generalistas, rente à hora do almoço se entregam à análise de crónicas criminais -, que ouvi um comentário que me deixou perplexa.   

Normalmente, limito-me a seguir de ouvido sem dar grande atenção aos detalhes. Por isso, o que aqui reproduzo, apesar de não ter contornos de pormenor no que ao crime diz respeito, é fidedigno em relação às opiniões dos intervenientes.

Tratava-se de um indivíduo que, durante anos, praticara o crime de abuso sexual contra uma criança da familia, mas que, após denúncia, conseguira fugir para um país da Europa, de modo a não poder ser localizado no seu novo paradeiro.  Após longo perído de ausência, e pensando que tudo estaria já esquecido, regressou a Portugal. É, então, descoberto, acusado e preso.

No estúdio, como é habitual, está um inspetor da Polícia Judiciária (já reformado e com um invejável currículo na área da investigação criminal), um advogado, para se pronunciar sobre a moldura penal ajustada ao crime, e uma psicóloga que procura interpretar as motivações do crime, bem como avaliar os danos sofridos pela vítima e o tipo de tratamento a que deve ser sujeita. Aqui chegados, eu, que habitualmente estou de costas voltadas para a televisão a preparar a minha refeição, senti-me impelida a olhar para quem acabara de proferir a mais absurda das sentenças.

Perguntava o locutor que razões teria levado o presumível autor a correr o risco de ter regressado a Portugal, ao que a advogada respondeu que as saudades da terra e da família talvez tivessem sido o motivo… que era normal, que todos os emigrantes sentem o mesmo e, no caso daquele, como há muito saíra de Portugal, deveria sentir a falta da família e dos amigos.

A psicóloga de imediato a interrompeu, defendendo de alma e coração que o argumento da saudade é cada vez mais um mito nacional a que todos nos agarramos.

Até aqui, dou de barato que a dita senhora tem direito à sua opinião, por mais discutível que esta seja.

O que se seguiu é que me fez virar do avesso, porque se baseava no facto de o condenado ser um ilhéu.

– Não, não acho que tenha sido a saudade a pesar, até porque não me parece que este indivíduo tivesse grande ligação à sua terra. Ainda por cima, ele é de uma ilha!

Estão a seguir o raciocínio, não estão?  Segundo esta douta senhora, um pedaço de ilha não prende ninguém.

Ele era açoriano e quem nasce numa ilha e vive na ilha (pois onde houvera de viver?) não tem o direito de se sentir ligado à terra! Assim definido matematicamente, como se o amor ao chão fosse diretamente proporcional ao seu tamanho, sem que aqui entrassem as variáveis do afeto e da relação de pertença. 

Não sei por que livros estudou ela esta teoria, já que o amor ao chão não é matéria que se aprenda.

Apega-se a nós desde o berço, através dos braços que nos embalam, das vozes que entoam as canções de ninar, dos sotaques que nos situam num lugar, dos passos que vamos dando desde a infância a percorrer o caminho de uma identidade feita de sons, cheiros, cores e sabores, que definem a pertença ao chão de onde partimos.

Por muito pequeno que seja, faz parte da nossa geografia dos afetos.

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