Opinião

Para a minha “farmor”

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O meu avô paterno, português, casado com a minha avó, dinamarquesa, vive na Dinamarca e está a escrever um dicionário. Passamos horas conversando sobre palavras. As palavras, de uma forma geral. É um ritual nosso, desde que me lembro. Os anos passam, as nossas conversas continuam, algumas renovam-se e outras até se repetem, sem que as palavras alguma vez se esgotem. A título de curiosidade, pode ler-se no rascunho do seu dicionário:

Slægt: n família; familiares; parentela; (herkomst) estirpe; (æt) linhagem; ascendência/ descendência de qualquer família; (efterkommer) progénia; prole; (bot, zoo) género; (føre sin s. tilbage til) traçar a sua ascendência/ linhagem até; han her i s. med mig ele é meu parente; s. og venner familiares/ parentes e amigos.
Farfar: n avô paterno.
Farmor: n avó paterna.

E é ela, a “farmor”, que hoje me faz escrever.

O cadeirão onde se sentava, habitualmente, ora a ler, ora a ver os programas na televisão, ora a fazer as palavras cruzadas, diz-me muito. É o seu cadeirão e aquele nunca deixará de ser o seu lugar. Ao contrário do “farfar”, a “farmor” nunca construiu um dicionário, nem sabe falar português. Contudo, compreende-o muito bem e diz, inclusivamente, algumas palavras na perfeição – “Bécas” é uma delas, e era assim que me chamava.

A nossa ligação avó-neta tem uma magia que fomos desenvolvendo ao longo dos anos em torno de uma comunicação que vai muito além do diálogo. Quando estive em casa deles, em 2019, por exemplo, cozinhámos juntas as melhores bolas com passas de uva que a Dinamarca alguma vez viu. E não são só as receitas, mas tudo por onde passava tem a sua marca, que se prende com a calma, a delicadeza e o rigor. Desde o andar ao cozinhar, das tarefas aos objetos, na sua casa tudo fala por si.

Tal como o cadeirão, há uma série de outras coisas que têm subtilmente estampadas uma assinatura que, embora não se veja, sente-se, e todos sabemos que está lá – na dobra do guardanapo, nos sapatos arrumados à entrada de casa, na caneca de cerveja, no cabelo bem penteado, nos brincos ou no caminhar inclinado, espreitando-nos com o olhar fugidio sob os óculos. E os olhos, esses, de um azul frágil e profundo, tantas vezes falaram mais do que a boca!

Tudo isto não passa, agora, de fugazes recordações.

Mais do que as receitas que aprendi e das frases que decorei, hoje reconheço que comunicar ultrapassa a capacidade de partilhar um mesmo idioma e que o cuidar transcende a comunicação comum a que, diariamente, nos acostumamos. Na verdade, descobri muitas coisas com a minha “farmor” – a mais bela de todas, é que apesar de o amor também morar nas palavras, poderá sempre sair de casa. E nós fomos a prova disso.
Hoje, o cadeirão não passa de um cadeirão, uma cadeira almofadada que não fala a mesma língua que eu, pela ausência que me recuso, ainda, a compreender. Aceito, porém, a ideia da eternidade e da permanência de tudo o resto que fica. Mas hoje, esse resto não passa de uma cadeira vazia, que, com as memórias, fala, grita e canta, em uníssono, como quando eu era uma criança – a sua Bécas.

Da junção de algumas páginas do dicionário do meu avô, deixo-lhe hoje estas palavras, escolhidas na certeza do nosso amor: Bécas kan lide di, farmor, for altid. (A Bécas gosta de ti, fámó, para sempre).

Catarina Matos

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