Temas de Capa

“Temos de ter muito cuidado ao estabelecer limites à liberdade de expressão, porque acabamos por esmagar a própria liberdade de expressão” – Hani Faris

wooden-dolls-with-speech-bubble-2022-11-18-18-46-09-utc

O hate speech, ou discurso de ódio, alimenta-se do extremismo de opiniões ou convicções e põe em risco, de uma forma consistente, aquilo a que chamamos Estado de Direito democrático. A liberdade de expressão, cujos limites devem garantir o respeito pelos outros, entra numa roda livre, dando a ideia de que tudo pode ser dito. Este fenómeno não é novo, por isso as leis da esmagadora maioria dos países democratas, embora respeitando o artigo 19 da Declaração Universal do Direitos Humanos que diz que a liberdade de expressão é um direito de todos os seres humanos, legislaram no sentido de impor os limites necessários para que não se descambe num discurso de calúnia, ofensa, racista…

No caso da histórica contenda entre a Palestina e Israel, que põe em evidência duas visões antagónicas e que tanto sangue tem feito correr, é muito fácil que mensagens de ódio circulem e amedrontem ambos os lados. Num país como o Canadá, defensor da liberdade e que se orgulha do multiculturalismo que promove e apoia, é no mínimo estranho que sejam reveladas situações onde o ódio circula sob a capa da liberdade de expressão.
O Professor Hani Faris, é um profundo conhecedor do assunto Israelo-Palestiniano, tendo estudos desenvolvidos nas seguintes áreas: Middle East politics & governments, Arab politics & governments, Arab-Israeli conflict, Palestinian issue, politics of developing countries, Islam & Muslims. Foi com ele que conversámos e tentámos perceber como se pode lidar com este assunto, garantindo a liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, não permitindo que o discurso de ódio se instale. E se por um lado Hani Faris defende que quando o discurso se transforma em violência tem que ser travado de imediato pelas forças de segurança, por outro lado temos que garantir que estabelecendo limites à liberdade de expressão não estamos a destruir a própria liberdade.

Milénio Stadium: Como se pode garantir que o direito humano de liberdade de expressão não se transforma em discurso de ódio?
Hani Faris: Os Direitos Humanos são um conceito que foi desenvolvido após a Segunda Guerra Mundial e dividem-se basicamente em dois tipos de direitos: 1 – os direitos cívicos e políticos; 2 – os socioeconómicos e culturais. Na altura, a liberdade de expressão não era um dos Direitos Humanos declarados. A liberdade de expressão como um direito humano é mais adotada por países altamente avançados (na educação, nível de vida e outros aspetos). Por isso, é preciso ter isso em mente. Em segundo lugar, não há garantias de que a liberdade de expressão não se transforme em discurso de ódio. No entanto, é preciso ter cuidado com o que constitui discurso de ódio, porque nas últimas seis semanas da Faixa de Gaza, da invasão israelita, as diferentes partes chamaram a diferentes coisas racismo ou discurso de ódio. Algumas não o são. Depende de quem está a dizer o quê. Alguns conceitos defendidos por um grupo podem não estar de acordo com os conceitos defendidos por outro grupo. Então, há alguma garantia de que, quando se dá liberdade de expressão, não se vai entrar em discurso de ódio? E eu respondo que não, não há garantias. Temos de o aceitar como é, até certo ponto.

MS: Nas manifestações que têm acontecido na cidade de Toronto, há evidência de um discurso marcado pelo ódio e no caso das manifestações pró-palestina há também alguns sinais de antissemitismo. Como evitar que este discurso se propague e venha a transformar-se em ações violentas de parte a parte?
HF: Bem, mais uma vez aqui, tenham cuidado com os conceitos e as palavras que utilizam para descrever as coisas. Diz, “alguns sinais de antissemitismo”, mas não quer dizer antissemitismo. Não é de antissemitismo que está a falar. O conceito de antissemitismo é um conceito europeu do século XIX. Foi desenvolvido por um alemão e, na altura, estas pessoas não sabiam muito sobre outras sociedades que eram semitas. Por isso, chamavam aos judeus, os somalis e ao ódio aos judeus, o antissemitismo. Mas quando se chega ao Médio Oriente e a outras sociedades do Sul, os árabes, por exemplo, são o coração do semitismo. Os hebreus ou judeus também são semitas. Por isso, quando se fala de antissemitismo, pode ser anti-árabe ou anti-judeu. Mas no contexto europeu, no contexto europeu do século XIX, o conceito refere-se aqui a anti-judeu. Por isso, antissemitismo é um termo errado.

MS: Mas o discurso de ódio, seja ele qual for pode servir para silenciar ou amedrontar os visados. Há já relatos de que há cidadãos residentes no Canadá com receio do que possa vir a acontecer. O que pode e deve ser feito para travar esta situação de instabilidade e sentimento de insegurança, tanto por parte dos palestinianos, como dos judeus?
HF: Bem, quando o discurso se transforma em violência, esse é o domínio das forças de segurança, da polícia. Cuidar dessa violência não tem muito a ver com o discurso de ódio. Os dois podem juntar-se, estar juntos, mas não necessariamente. Mas quando se transforma em violência, isso é muito grave numa sociedade. E há que pôr cobro a isso de imediato. Não se pode permitir que a violência ocorra numa sociedade civil, porque é ela que a cria. Desagrega a sociedade e causa tumulto e instabilidade. Por isso, sim, não devemos permitir a violência de nenhum dos lados ou de qualquer lado. Se alguém diz algo contra os judeus enquanto judeus, claro que isso é ódio e não deve ser tolerado. Sim. No entanto, certas acusações sobre discurso de ódio não são discurso de ódio. Isso é uma mentira. E representa mais uma posição política do que uma leitura objetiva e cuidadosa do que acontece quando se é judeu. Para vos dar um exemplo. Quando diz que os palestinianos dizem que a Palestina é livre do rio ao mar, há quem diga que isso é discurso de ódio. É contra os judeus e o Estado judaico, e deve ser. E é antissemita? Não, não é, e não se trata de qualquer ódio aos judeus. Por isso, se alguém levanta uma faixa ou grita contra os judeus em si? Sem dúvida que é um discurso de ódio. É verdade. Não tem o direito de o fazer. E isso é discurso de ódio. Conheço centenas de judeus que apoiam a política palestiniana e a causa dos palestinianos em geral. Um dos maiores grupos da América do Norte que tem sido mais eficaz no apoio à política palestiniana é o Jewish Voice for Peace, JVP. São judeus, mas discordam das políticas de Israel e não aceitam as suas políticas em relação aos palestinianos. Por isso, quando o discurso se transforma em violência… este é um domínio das forças de segurança.

MS: O Canadá é conhecido por ser um dos países mais multiculturais e multiétnicos do mundo. Poderão, no entanto, face ao que se passa em Israel e na Faixa de Gaza, a liberdade de expressão e/ou o conceito de respeito pelo outro neste país estar hoje comprometida?
HF: Sim, é possível. Embora eu acredite que a sociedade canadiana e o sistema que o Canadá possui continuarão a promover valores multiculturais e multiétnicos e que continuarão a permitir a liberdade de expressão e o conceito de respeito pelos outros. Mas será que isso vai acontecer? O conceito de respeito pelos outros pode ser comprometido? Sim, se for permitido.
Há quatro pontos fundamentais:
Primeiro promover a tolerância, o valor da tolerância.
Em segundo lugar, respeitar o direito dos outros a exprimirem as suas opiniões, proporcionar canais para a expressão de pontos de vista – há que deixar as pessoas dizerem o que têm em mente. Não se pode calá-las porque, quando se faz isso, reprimir as pessoas de expressarem as suas opiniões não se promove o respeito entre os diferentes setores da sociedade. Seria um erro reagir emocionalmente e reprimir as pessoas, ou impedir que elas expressem os seus pontos de vista. E como eu disse devemos promover o valor da tolerância. Devemos ensinar o respeito pelo direito de cada um, o direito de expressar as suas opiniões.
Terceiro, devemos proporcionar canais para as pessoas tomarem posições positivas, ajudar a exprimir essas posições positivas.
E, finalmente, garantir que os canais públicos não tomem posições partidárias. Por exemplo, a CBC, que é uma instituição pública de radiodifusão canadiana, não deve tomar posições contra um partido ou contra outro. Deve ser sempre neutra e permitir que ambas as posições sejam transmitidas. Portanto, estes são os quatro pontos que eu sugeriria.

MS: A liberdade de expressão não é absoluta – a minha liberdade termina onde começa a do outro. Então como se pode estabelecer os limites de expressão de modo que não se propaguem discursos de ódio?
HF: Temos de ter muito cuidado ao estabelecer limites, como referi, à liberdade de expressão, porque acabamos por esmagar a própria liberdade de expressão. Quem tem o direito de limitar a liberdade de expressão? Até que ponto se pode limitar a liberdade de expressão com a expressão? Se vamos limitar, começamos a fazer isso e o que estamos a fazer é a criar um problema.
O que é liberdade de expressão e o que não é liberdade de expressão? O que é discurso de ódio e o que não é um discurso de ódio? Então temos um problema. A liberdade de expressão, como a Madalena disse, é um direito humano, todos os seres humanos têm esse direito à liberdade de expressão. Agora, quando o discurso se torna odioso toda a gente concorda, universalmente concorda, que então podemos fazer alguma coisa. Há sempre o sistema legal a que se pode recorrer, no pior dos casos, existe um sistema legal no país e recorre-se a ele. E pode coibir-se alguém ou algum grupo de expressar determinadas opiniões para manter a paz na sociedade.

MS: Que posicionamento devem assumir as autoridades, responsáveis pela segurança pública (quer ao nível provincial, quer federal)?
HF: Penso que o governo deve permitir ou as autoridades que mencionou devem permitir a mais ampla liberdade de expressão possível. É verdade. Para vos dar uma ideia. Aconteceu em Londres no fim de semana passado – as pessoas decidiram marchar para apoiar o cessar-fogo em Gaza. E a ministra do Interior decidiu impedir a marcha. Ela não tinha autoridade para impedir uma marcha pacífica. O chefe da polícia de Londres disse: “Não, não pode impedir estas pessoas. Elas têm o direito de se exprimir através de uma manifestação, uma manifestação pacífica. E eu vou permiti-la, diga o que disser”. E foi o que fez. E o que é que aconteceu? Mais de 300.000 pessoas. Uma das maiores manifestações de sempre em Inglaterra. Foi muito pacífica e muito eficaz. E o que é que aconteceu? A ministra do Interior foi demitida. Sim, ela foi expulsa pelo primeiro-ministro inglês. E o gabinete foi reestruturado. Portanto, é fundamental permitir a mais ampla liberdade de expressão possível. E encorajar mais informação. Quanto mais as pessoas compreenderem e tiverem informação sobre os temas que constituem o problema, a crise no Médio Oriente e a crise israelo-palestiniana, mais elas são capazes de julgar as coisas de forma racional e objetiva. Quando não o fazemos, quando temos pouca informação ou má informação, fazemos juízos errados. Cometemos erros de julgamento. É preciso encorajar a difusão de informação correta e objetiva sobre o que se passa.

Madalena Balça/MS

Redes Sociais - Comentários

Artigos relacionados

Back to top button

 

O Facebook/Instagram bloqueou os orgão de comunicação social no Canadá.

Quer receber a edição semanal e as newsletters editoriais no seu e-mail?

 

Mais próximo. Mais dinâmico. Mais atual.
www.mileniostadium.com
O mesmo de sempre, mas melhor!

 

SUBSCREVER