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“Nunca tive medo de aceitar os desafios”

Maria João Maciel Jorge

Maria João Maciel Jorge

 

Milénio Stadium: Eu tive a oportunidade de a ouvir dizer, numa outra entrevista, que nunca planeia nada na sua vida, que as decisões são tomadas à medida que as coisas vão acontecendo. Qualquer coisa deste género. É desse modo também que encara esta mudança na sua carreira profissiona? 

Maria João Maciel Jorge: É, porque eu acho que a vida é muito aborrecida quando nós temos planos e quando somos demasiado rígidos. A minha carreira profissional sempre foi assim. Eu virei académica, de certa maneira, por acidente, por primeiro tentar estudar temas e disciplinas que me interessavam. Portanto, nunca pensei – “eu vou por aqui, porque aqui é que eu consigo um trabalho que me dará dinheiro, que me dará um lucro financeiro”. Sempre fui estudando o que eu gostava e depois fui muito encorajada por mentoras. Tive mulheres professoras muito importantes na minha vida, que sempre me transmitiram certos desafios e sempre me perguntavam “o que é que vais fazer a seguir?” e eu sempre dizia “ai não sei, não tenho planos”. Então uma vez uma minha diretora de licenciatura disse-me: “porque não fazes um mestrado? E porque não fazes um mestrado em Gil Vicente? Tu gostas daquele período? Gil Vicente escreveu nas duas línguas. Quem sabe poderá abrir portas no futuro. Então eu fiz o mestrado porque, de facto, eu gostava. Depois foi a mesma coisa quando eu acabei o mestrado. Houve outra pessoa que me disse “agora o que é que vais fazer?” e eu outra vez não tinha a mínima ideia. E ela disse “porque não te candidatas a um programa de doutoramento?” Candidatei-me na Universidade de Toronto e fui aceite. Assim comecei e o resto da minha carreira também foi assim. Alguém me disse – “olha, há uma vaga em York, porque não te atreves a entregar uma candidatura?” – lá fui, assim. E depois? Eu nunca pensei que queria ser chefe de departamento, mas também surgiu o desafio. Acho que, de certa maneira, eu nunca tive medo de aceitar os desafios. Nunca quis ser vice-reitora, por exemplo. Mas quando chegou a oportunidade e quando pensei nela também pensei “porque não eu?”. 

MS: Com 18 anos ainda saiu casada ou para casar porque precisava de sair daquele mundo fechado que é a ilha, que é fechada por natureza, rodeada por água. Olhando hoje para trás, tornaria a fazer o mesmo? 

M.J.M.J.: Sim! Claro! Eu saí aos 18 anos porque eu ainda cresci numa época que era um bocadinho problemática. Lembro-me de crescer, de ser muito jovem e de não termos água canalizada e de não termos eletricidade. E também me lembro que eu não sabia o que é que eu podia ser se ficasse na ilha, porque a ilha naquele tempo era muito diferente, era muito pequena mesmo, ainda mais pequena do que é hoje. Então eu faria tudo outra vez, de novo. E foi o tal desafio. Eu não sabia quase nada do Canadá. Eu tinha família nos Estados Unidos, na Califórnia e naquela área também muito popular em Boston e arredores de Boston e, de facto, não sabia quase nada do Canadá, mas pensei ”que bom será ver mais do que ver o mar”. Portanto, sim, eu faria tudo outra vez. De novo.

MS: Apesar de no início, como acontece com quase toda a gente que começa uma vida num país diferente, ter tido necessidade de trabalhar em áreas que não têm nada a ver com aquilo que a Maria João é hoje, por exemplo, trabalhou nas limpezas, em fábricas. Que memórias tem desses primeiros tempos? Foram tempos angustiantes em que pensou desistir? 

M.J.M.J.: Ai eu pensei muitas vezes em desistir. Aliás, quando eu cheguei ao Canadá, a minha primeira experiência foi beber uma bebida chamada Root Beer. E eu lembro-me que cheguei cá com 79$ e com muitos sonhos e quis ter uma experiência canadiana. Então pedi essa bebida Root Beer. Eu já conhecia a Pepsi, já conhecia a Coca-Cola, isso tudo, mas nunca tinha provado Root Beer. E lembro-me de beber aquilo e pensar “Ai meu Deus, que desastre! Será que vai melhorar a partir daqui?”. Melhorou de facto. Hoje em dia ainda não gosto de Root Beer, mas há muitas outras opções. Sim, eu vim como muitas mulheres vieram antes e depois de mim. E muitas continuam a chegar em muitas piores condições do que eu cheguei. Quando eu cheguei eu já falava bastante bem inglês. Sempre fui uma menina que gostava muito de línguas, portanto, na escola secundária eu tirei o francês, o inglês, o alemão. E eu sabia, de facto, que eu era uma pessoa das Humanidades. Acho que estava na quarta-classe quando percebi que matemática não era para mim. Portanto, eu sabia. Havia certas coisas que eu sabia. Mas como estava a dizer, eu cheguei muito mais bem preparada do que as nossas mulheres pioneiras chegaram nos anos 50 e 60, obviamente. Claro que foram anos bem difíceis e muitas vezes eu pensei em regressar, mas eram pensamentos muito breves. Porque regressar a quê? Regressar e fazer o quê? Portanto, eu pensei “não, eu hei-de conseguir! Eu hei-de conseguir decifrar o que é que eu quero ser”. E de facto, trabalhei em fábricas, trabalhei como mulher de limpeza. E eu consegui esse trabalho porque era portuguesa. Claro que eu desapontei o meu patrão porque um dia ele pergunta-me “a senhora é portuguesa?” E eu disse “sim, porque é que pergunta?” E ele disse “tu não és nada boa nas limpezas”, portanto, eu fui quebrar aquele cliché que as mulheres portuguesas são todas ótimas donas de casa, etc. Mas esses trabalhos também me permitiram apreciar o trabalho, o trabalho duro. Foi aí que eu consegui desenvolver a minha ética de trabalho. Quando eu ingressei na universidade, eu tinha um filho, era mãe solteira e, de facto, o primeiro ano da universidade foi pago pelo trabalho que eu tive numa fábrica. 

MS: Essa sua decisão de entrar na universidade quando estava sozinha com o filho, sabendo que a universidade aqui no Canadá, é particularmente cara e, portanto, seria para si mais difícil do que para muitas outras mulheres que não tivessem filhos, por exemplo… porque é que tomou essa decisão? Em que momento é que achou que era por ali o caminho?

M.J.M.J.: Bem, porque o trabalho da fábrica aborrecia-me. Era um trabalho de certa maneira automático, em que eu podia desligar o meu cérebro, eu podia deixar o cérebro pendurado algures e estar ali a fazer os movimentos automáticos. Portanto, eu achava que o trabalho da fábrica não me satisfazia. Precisava de algo mais. Depois, eu na escola secundária sempre fui boa aluna, sempre gostei de aprender. E de facto, quando eu vim para o Canadá, eu tinha ideias, não conseguia imediatamente, mas eu tinha ideias de frequentar o ensino superior, não sabia bem como, nem quando e depois quando eu tive um filho… é mais complicado, não é? Mas eu sabia que muitas universidades ofereciam apoios para pessoas com famílias ou, no meu caso, para mães solteiras. E eu escolhi a Western porque, de facto, eu fiz várias visitas a várias universidades e gostei dos apoios que havia na Western University para apoiar pessoas na minha situação.

MS: E escolheu logo esta área das línguas e literatura?

M.J.M.J.: Bem, no primeiro ano eu escolhi um bocadinho de tudo. Eu sabia que era da área das Humanidades e das Ciências Sociais. Eu sabia que eu não era aluna da Faculdade de Ciência. Isso eu sabia. Agora eu não sabia bem ao certo o que é que eu queria. Então, no primeiro ano eu tirei Japonês, tirei História, tirei Filosofia, tudo coisas que ainda me atraem, não é? E depois, no segundo ano, tive um professor que me apresentou ao Renascimento e tirei uma disciplina com ele sobre a comédia espanhola e fiquei totalmente encantada. Não sabia o que que eu iria fazer com aquilo, mas sempre foi assim que tenho tomado decisões e então continuei a explorar. E de facto interessava-me a literatura e interessava-me aquele período da modernidade muito incipiente, daqueles anos 1500, porque também me interessava por aqueles encontros coloniais, especialmente entre os portugueses e os indígenas brasileiros do século XVI.

MS: E daí esta sua ligação a este universo das literaturas e das línguas e da lusofonia, que acabou por ser, pelo menos nos últimos anos da sua atividade, a sua área de trabalho. Essa área foi muito desenvolvida na York University, muito graças à Maria João que acabou por criar aqui a Associação de Estudos Lusófonos. Acha que, de certo modo, foi assim que acabou por alertar tantos para a importância do português como língua de tantos povos?

M.J.M.J.: Eu sou apenas uma pequena parte desse movimento, portanto, não foi minha ideia exclusiva criar uma associação. Foi um diálogo que, há mais de uma década, começou a surgir entre vários académicos que trabalhavam o mundo lusófono, entre outros, o nosso colega que está em Halifax, o Fernando Nunes, o meu colega aqui da York, Rob Kennedy, mas também os colegas que estão na Trent University, e a Ivana Elbl, que é diretora da Portuguese Studies Review e vários outros colegas. E depois nós começámos a perceber que na Universidade de York havia imensos investigadores que trabalhavam o mundo lusófono. Temos colegas em Ciências Políticas, também em História, temos colegas em mMúsica. Portanto, não era só a nossa faculdade, mas a universidade em geral. Depois houve um estudo feito pelo leitor do Camões, que naquela altura era o José Pedro Ferreira, que agora é o coordenador do Ensino da Língua Portuguesa aqui no Canadá, e a docente de York, que naquela época era a Rita Rolim que realmente confirmou as nossas suspeitas de que havia mais investigadores a trabalhar o mundo lusófono em York do que qualquer outra universidade. Portanto, fazia mesmo sentido desenvolver uma lusofonia mais forte aqui e valorizar tudo o que tenha a ver com o mundo lusófono. Depois, nós também aqui temos centros de investigação que são muito pertinentes para a lusofonia. Também achámos que por pela York estar situada em Toronto e Toronto ter uma das maiores comunidades portuguesas e lusófonas, também temos números crescentes de imigrantes que vêm do Brasil, que vêm de outras áreas lusófonas. Portanto, fazia todo o sentido termos isso aqui e ser também uma casa em que as nossas comunidades se sentissem bem e que viessem e interagissem connosco. E de facto, pelo menos enquanto eu fui presidente da Associação de Estudos Lusófonos, uma das coisas que nós sempre quisemos fazer foi celebrar os movimentos comunitários. Portanto, nas nossas conferências nós demos sempre a saber aos nossos colegas que nos visitam o que é que se passa na comunidade. E foi isso que fizemos também nesta última, que foi a minha última conferência como presidente da Associação.

MS: Para percebermos a importância q-meue tem o cargo que a Maria João tem agora, é importante também percebermos em que universidade estamos, não é? Isto é um mundo em ponto pequeno. Estamos numa universidade bastante importante por tudo o que tem sido desenvolvido aqui. O facto de a York ser tão recetiva a estas ideias inovadoras, a criação da Associação, o trabalho desenvolvido pelo professor Gilberto Fernandes, que também tem sido muito suportado pela York University. Podemos dizer que tudo isso faz com que esta universidade seja uma universidade especial no que diz respeito à lusofonia?

M.J.M.J.: De facto o trabalho que o colega Gilberto Fernandes, atualmente, dirige é um trabalho único em qualquer universidade canadiana que celebra o nosso trajeto, a nossa história de vida, de emigração. Portanto, ele é agora o que lidera aquele projeto, que foi formado enquanto ele ainda era aluno de pós-graduação aqui. Mas sim esta universidade é um lugar especial. Porquê? Por vários motivos e não só para a lusofonia, mas pela missão da universidade e da faculdade, quanto à justiça social e à inclusão e à representação universitária das nossas comunidades. Portanto, nós somos uma universidade em que a maior parte de nós somos os primeiros a frequentar a universidade. Temos muitos alunos. A maior parte deles são trabalhadores-estudantes. Alguns deles trabalham quase a tempo inteiro, estudam a tempo inteiro, têm responsabilidades familiares, ajudam famílias, ajudam pais e mães e avós e têm filhos, alguns deles com famílias no estrangeiro, muitos deles refugiados políticos, muitos deles fugindo de algo. Portanto, aqui, desde que eu estou aqui, sempre me senti bem. É uma universidade de ideais de inclusão e acho que por isso também é importante. Aliás, eu lembro-me quando eu pedi apoio logístico de Informática, conheci o diretor do departamento de informática aqui da faculdade e quando lhe falei sobre o projeto, mostrei-lhe uma foto que era a foto dos primeiros pioneiros portugueses e o pai dele estava nessa foto. Eu não sabia, nem ele sabia que eu ia mostrar aquela foto, dos homens que chegaram no Saturnia. Portanto, há uma história aqui. Eu costumo dizer que é uma universidade de milagres em que nós chegamos aqui com muito pouco e conseguimos fazer muito com esse pouco.

MS: Em relação aos alunos lusófonos e, nomeadamente, lusodescendentes podemos ficar sossegados? Há muitos alunos nesta área?

M.J.M.J.: Não. Eu acho que nós não devemos ficar sossegados porque temos poucos alunos. Desde a pandemia tem havido uma quebra muito grande. Mas essa quebra não é só uma quebra que afeta os programas de português. Temos poucos alunos nos programas de línguas, em geral. Claro que algumas línguas são muito populares. O coreano, por exemplo. Temos muito interesse em coreano, temos muito interesse em chinês. Eu diria, as línguas europeias, o português, o alemão, o espanhol, o italiano… tem havido uma quebra muito grande, mas também tem havido outra coisa, tem surgido o interesse de alunos que não têm ligação lusófona. E, de facto, a nossa aposta é abrir o mundo lusófono a alunos que não têm essa ligação. Portanto, temos de facto, pouco interesse de descendentes da comunidade. Não sabemos bem o porquê. Eu acho que muitas vezes o português é associado a uma língua minoritária, o que não é verdade, mas é associado a países de poucos recursos económicos. E, portanto, não há uma perceção de que podem triunfar falando outras línguas. Se bem que a pesquisa nos mostre que, de facto, quando nós falamos outras línguas, abrem-se mais portas. Obviamente, porque mesmo nas disciplinas de negócio, mesmo nos cursos de negócio, claro que quantas mais línguas os alunos falam, mais oportunidades no mundo laboral multicultural surgem. Mas eu não sei se também os alunos estão, de facto, um bocadinho obcecados com o que eles pensam que vai dar certo. Áreas como informática, gestão de empresas. Não sei se é uma decisão feita por eles ou se é feita pelas famílias, mas acho que é uma pressão atualmente muito marcada pelo lado económico. 

MS: A professora Maria João assumiu, recentemente, esta função de Associate Dean e ainda por cima dentro das suas funções tem como missão estabelecer pontes entre a Universidade e a comunidade em geral. É mais um grande desafio para si…

M.J.M.J.: Claro que é um grande desafio para mim. Apenas quero clarificar que eu sou Associate Dean da faculdade. Aqui cada faculdade tem a equipa de reitores, tem uma reitoria, não é? Mas eu sou a única na York University que tem este portfólio, portanto, eu sou a única que há que aborda o engajamento comunitário, a internacionalização. A mim o que me interessa, especialmente porque eu venho de um grupo que, de certa forma, é um grupo marginalizado. Falava-se muito, penso que agora já não se fala muito, ou pelo menos eu imagino ou quero imaginar que nós já conseguimos ultrapassar aquele discurso de que os nossos jovens não frequentam universidade há muito tempo. Falava-se disso. Quais eram os motivos? Há vários motivos, mas grupos marginalizados, de facto, para mim, são exemplos que me motivam ainda mais, porque eu venho de um desses grupos marginalizados. Portanto, o que eu de facto quero promover é o acesso de todos os jovens e dos alunos internacionais também, mas todos os jovens que pensam que a universidade não é para eles. Parte do meu trabalho é fazer com que eles sonhem e com que eles digam para eles próprios se ela conseguiu, talvez eu também deva ir para a universidade.

MS: Um dia, com 18 anos, saiu dos Açores, do Faial. Um dia voltará aos Açores?

M.J.M.J.: Acho que sim. Acho que sim, porque aliás, eu às vezes até tenho na minha cabeça estas ideias ridículas de um dia ter uma vida completamente diferente. Os Açores de hoje são uns Açores muito diferentes daqueles Açores em que eu cresci. Portanto, há muita gente nos Açores muito liberal, que pensa como eu, já é menos nítida a divisão de classes, portanto têm um ambiente muito mais acolhedor. O que a mim me atrai, nos acolhe e à medida que eu vou envelhecendo, atrai mais é o clima e a qualidade de vida. Nos últimos anos tenho de facto refletido muito sobre isso. Tenho um livro que vai sair agora no outono, que é sobre viver, ser um hífen, viver entre dois mundos ou mais, que nem sempre são compatíveis. Mas há uma compatibilidade nos Açores hoje em dia que não havia quando eu tinha 18 ou 20 ou 30. Mas hoje em dia há. É claro, eu sou uma pessoa urbana, mas já fui mais urbana. De facto, quando eu vou aos Açores eu aprecio a natureza, aprecio aquele ambiente que a mim me parece, promove uma qualidade de vida mais saudável. Portanto, não digo em breve, quando eu for velha. Agora ainda não sou assim tão velha como isso.

MS: Mas quando for… será para o Faial a olhar para o Pico e rodeada de cães?

M.J.M.J.: Eu acho que não há outra paisagem nos Açores. Essa paisagem é única e acho que há muito trabalho a fazer ainda nos Açores em defesa do meio ambiente, em defesa dos animais. Aliás, eu tenho uma cadelinha que veio de lá, veio de um abrigo e, portanto, gostaria de um dia que regresse, se regressar, me envolver com este tipo de trabalho. Mas é sempre a mesma coisa, eu não faço planos, portanto iremos ver. 

Madalena Balça/MS

 

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