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“Contar a história exatamente como aconteceu. Esta, de facto, seria a maior das reparações.” – Pedro Malungo

 

Pedro Malungo é angolano. Estudou vários anos em Portugal, onde tirou o curso de Antropologia e está já há uns tempos no Canadá, onde reside e é líder comunitário, organizando diversos eventos ligados à ou para a comunidade angolana, residente no Ontário. Pedro aceitou falar connosco sobre um assunto que considera que ainda é tabu, principalmente na sociedade portuguesa – a colonização e as reparações históricas. Este assunto agora, mais do que nunca na ordem do dia, mexe em feridas profundas e por isso se torna difícil de enfrentar. Na opinião de Pedro Malungo, uma boa forma de fazer alguma justiça relativamente ao passado colonial seria o sistema de ensino português ensinar essa parte tão importante da História de Portugal com verdade. Mas isso só não basta, isso só, na opinião de Malungo, não paga o sofrimento e os anos de “pilhagem” do tempo do colonialismo.

Milénio Stadium: Qual é a sua opinião sobre a tomada de posição do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, uma vez que é oriundo de Angola, um país que é ex-colónia de Portugal?
Pedro Malungo: Este assunto da reparação não é um assunto novo. Esse assunto já foi debatido na cimeira de Durban, na África do Sul, não é? Já foi debatido esse tema em relação à reparação para os países africanos. Tal como foi feita uma reparação em relação aos judeus, não é? Então, já se vem falando disso há muitos anos. Isso é uma coisa que há vários ativistas africanos que vêm debatendo há muitos anos. Mas de facto, a fala do presidente Rebelo de Sousa apanhou-nos de surpresa, mas eu acho que é justa. Acho que é muito coerente da parte dele ter essa perspetiva. E eu sendo africano e descendente de africanos, acho que isso seria uma mais-valia para os países africanos, porque os países africanos perderam muito durante o processo esclavagista, não é?

MS: No caso de Angola, para além disso, há a questão da colonização propriamente, que durou até 1974. Considera que são dois assuntos distintos, é isso?
PM: Não, eu acho que é o mesmo assunto. Porquê? Eu ponho os dois no mesmo patamar, porque assim é o processo. O processo de colonialismo é quando a pessoa incute novos valores a uma outra civilização, impõe os seus valores, a outra civilização. E eu não conheço nenhuma colonização que não tenha um caráter impositor?

MS: Mas como é que se consegue quantificar? Ou seja, como é que é possível dizer se nós, para sermos devidamente ressarcidos de tudo o que vivemos e de toda a situação criada, tudo, o valor adequado é X? Como é que isto se quantifica?
PM: Eu não acho que neste momento o processo de reparação, tenha que ser só e somente em termos económicos, porque eu acho que o processo de escravatura e colonização foi um processo de imposição de cultura. Então, eu acho o processo de reparação seria exatamente deixar que as pessoas pudessem assumir a sua cultura original e a outra coisa seria em termos económicos. Por exemplo, eu acho que essa questão, que até já existe, de termos estudantes angolanos a irem para Portugal e terem acesso às universidades e coisas assim, eu acho que isso seria também uma reparação em termos de educação académica.

MS: Nesse aspeto, como disse, Portugal tem já estabelecidos protocolos de cooperação com as diversas colónias a vários níveis, a nível da educação e não só. Acolhendo angolanos ou moçambicanos ou santomenses em Portugal, mas também enviando profissionais, técnicos, professores, no caso o país assim requeira e sinta necessidade disso. Será que isto pode ser encarado por parte de Portugal como tentar compensar os anos todos de colonialismo e de invasão de território?
PM: Pode, até pode, mas eu acho que são coisas diferentes, porque os acordos que são feitos hoje em dia com os governos dos países de expressão portuguesa não são acordos em que Portugal paga as despesas desses países. Esses países enviam bolseiros para Portugal, mas esses países pagam os bolseiros. Esse dinheiro entra na economia portuguesa porque com esse dinheiro, os governos angolanos, guineenses e outros, pagam as escolas. Mas quando eu falo de uma reparação, falo no sentido de eles terem esses serviços gratuitamente em compensação por todo o sofrimento durante esse processo de colonização, porque não foi só sofrimento em termos físicos, mas foi uma pilhagem também. Porque os bens eram produzidos nesses países e os lucros iam para a metrópole, ou seja, para Portugal. Tudo isso fazia parte da riqueza do Império na altura.

MS: Há também quem argumente que, em “contrapartida”, foram sendo feitas infraestruturas – estradas, hospitais, escolas e tudo mais que ao longo da colonização ou do período em que os portugueses estavam a dominar o território, foram deixando ficar. Portanto, isto teria, segundo alguns defensores desta situação, que se fazer contas de “deve/haver”…
PM: Eu acho que as pessoas que falam isso não conhecem as ex-colónias, porque se conhecessem as ex-colónias e se conhecessem a história da colonização portuguesa, iam saber que a colonização portuguesa foi diferente da colonização inglesa ou francesa. A colonização portuguesa foi uma colonização costeira. Portugal nunca entrou para dentro dos países. Portugal fez construções na costa, fez cidades costeiras. E outra coisa, essas construções foram feitas não em prol das comunidades locais, mas essas construções foram feitas em prol aos portugueses que habitavam lá, ou seja, não houve uma preocupação com o desenvolvimento do território ocupado, mas mais com os interesses de Portugal.

MS: De qualquer modo, o que é que espera que venha a acontecer agora que o Presidente Marcelo lançou este tema para debate? O que é que acha que vai acontecer daqui para a frente? Qual é a expectativa que tem?
PM: É assim… em relação ao Presidente Rebelo de Sousa e em relação a Angola e os países africanos de expressão portuguesa, eu acho que é um passo muito grande, porque eu acho que é uma abertura para o diálogo e para saber em que moldes é que pode essa reparação ser feita, não é? Porque em termos de dinheiro será muito difícil quantificar, não é? Mas eu acho que, a partir de agora, já há aceitação disso e já há abertura ao diálogo. Neste sentido, eu acho que é muito bom. O que nós esperamos é que algumas portas sejam abertas em relação a próximas cooperações, que não seja só uma cooperação pura e simplesmente para beneficiar um dos lados, mas que seja uma efetiva cooperação entre Portugal e as ex-colónias. Ajudar as ex-colónias a erguerem-se, porque isso pode ser também encarado como um perdão das dívidas das colónias, não é? Então, eu acho que é um caminho para o diálogo. Acho que os dirigentes africanos deveriam, de facto, aproveitar a oportunidade para negociar com maior abertura. Mas eu acho que a maior e talvez mais importante vertente da reparação seria Portugal, nas escolas, contar a História tal qual ela aconteceu. Se nós pegarmos os moldes do que já se fez com os judeus, por parte da Alemanha, foi exatamente isso – contar a história exatamente como aconteceu. Esta, de facto, seria a maior das reparações. Eu acho que um dos problemas dos países de expressão portuguesa é o assunto colonização ser ainda um tabu, não é? Preferem não falar, mas é importante que se fale. É importante que se fale, porque quanto mais se falar a pessoa tem maior conhecimento e de facto consegue fazer um julgamento mais sustentado e efetivo.
MB/MS

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