Temas de Capa

“É triste que tenhamos tanto que “nadar contra a correnteza” para aprendermos a nadar” – Tiago Souza

 

Que impacto têm ou podem ter no comportamento do cidadão comum todos os casos de quebra de confiança, infração da lei, favorecimento e corrupção por parte de quem nos devia proteger e ser exemplo ao nível do comportamento ético? Que impacto tem, afinal, a constatação de que o sistema que devia ser protetor e robusto, está quebrado em várias frentes? Foi a partir destas perguntas gerais que procurámos a ajuda de alguém que lida precisamente com isso – a mente humana.

Tiago Souza é psicoterapeuta e aceitou ajudar-nos a enquadrar toda esta problemática. E, na essência, fica claro que é importante que todos nós ajudemos a quebrar barreiras que impedem que todos sejamos tratados de forma justa e igual e, naturalmente, cumprindo as mais elementares regras de convivência ético-social.

Milénio Stadium: Têm vindo a público notícias que indiciam comportamentos menos claros, por parte de pessoas que assumem cargos de responsabilidade e de quem se espera que os exerçam em plena conformidade com a lei. Até que ponto estas notícias podem criar uma sensação de insegurança no cidadão comum?
Tiago Souza: Instituições como governos, departamentos de polícia, escolas, hospitais e prisões são o reflexo daqueles e daquelas que as gerenciam e mantém com suas regras, normas e mandatos. Especialmente, no caso das instituições públicas, por mais que o ideal seja o exercício dos cargos para o benefício da sociedade e daqueles a que servem, encontramos os que se aproveitam desses cargos para benefício próprio, abandonando os propósitos originais a que se devem dedicar. Pela experiência que temos com clientes e no contato com grupos e comunidades, sabemos que a descrença e decepção com as instituições não é de hoje. Muitas dessas instituições exercem poder e opressão sobre os cidadãos ao invés de servi-los e protegê-los. Está sendo mais comum recentemente nos depararmos com notícias de atitudes antiéticas e não profissionais por parte de pessoas que exercem esses cargos, o que em verdade exacerba a falta de confiança e insegurança, que já existia no cidadão, mas hoje com a mídia e investigações são reforçadas, infelizmente. Isso traz tremendos prejuízos para a segurança pública, medo na população e generalização no sentimento de desconfiança e descrença.

MS: No caso mais recente da Superintendente da Polícia, que segundo as informações divulgadas terá favorecido pessoas da sua raça por sentir que, de outro modo, nunca teriam oportunidade de progressão, podemos afirmar que as vivências da própria no interior da instituição e, eventualmente não só, podem te-la levado a agir deste modo?
TS: Existem inúmeras possíveis razões para a atitude da superintendente da Toronto Police Services. Podemos considerar elementos como o racismo sistémico dentro dessas instituições, o que foi a sua justificativa. Poderíamos também considerar outros fatores sociais, psicológicos e mesmo internos institucionais de que não temos informação. No entanto, muitas vezes nós, no auge de raiva e frustrações, acabamos agindo contra nossos próprios princípios e nosso compasso moral, e o impacto de nossas ações é contrário ao nosso desejo de melhora. Os efeitos de qualquer ato opressivo podem gerar reações inesperadas em nós, sejam esses atos racismo, discriminação por sermos imigrantes, pobres ou sofrermos com uma condição física ou de saúde mental. Mas o impacto de algumas de nossas reações podem não seguir nossos genuínos desejos, o que infelizmente complica nosso processo de busca por mudanças individuais e coletivas.

MS: Até que ponto podemos atribuir a responsabilidade deste caso em concreto a um sistema que poderá não funcionar como seria esperado e não ser tratado igual e justo para todos?
TS: Se racismo institucional e sistémico contribuiu nesse caso, isso prova que o sistema não funciona como deveria. Como profissional da saúde mental e do serviço social, eu trabalho no sentido de quebrar as barreiras que impedem que todos sejam tratados com dignidade e tendo oportunidades justas. No entanto, é preciso que reflitamos sobre as causas e também como as combatemos. Cada um de nós vai responder a esse tipo de opressão de maneira diferente. A superintendente também tem responsabilidade, como profissional da polícia, de dar o exemplo de idoneidade e combate a discriminação, dentro das regras impostas pela instituição. Ela é o exemplo de que é possível o crescimento profissional, pois como mulher e negra chegou a esse cargo, mostrando que o “nunca teriam oportunidades” não é coerente com a sua história pessoal. Não há solução imediata para o racismo nas instituições, mas perpetuar a injustiça não parece ser o melhor caminho.

MS: Para além deste caso há vários outros que surgem no seio político, com mais ou menos impacto mediático – considera que podem gerar um sentimento de impunidade ao cidadão comum, do género “se eles infringem a lei eu também posso infligir”?
TS: Eu proponho o caminho inverso: será que os políticos e os governantes corruptos não seriam o reflexo de uma parcela da população que, mesmo silenciosa, apenas aguarda por oportunidades para infringir a lei e buscar justiça com suas próprias mãos? Quando um governante publicamente age impunemente e até se vangloria por isso, isso autoriza e valida os sentimentos populares de desejo de impunidade para suas próprias ações. Isso gera o que chamamos de “mob mentality” ou a mentalidade de multidões, que na psicologia é estudada como um processo coletivo de mútua influência. Comportamentos individuais são moldados e influenciados pelo contexto social em que ocorrem, e isso acontece quando um estopim como a eleição de um representante corrupto acende instintos e impulsos que são amplificados pelo contexto coletivo. Pensemos nisso como a representação coletiva de instintos e impulsos de subversão e rebelião que todos temos, mas que se exacerba pela pressão do grupo.

MS: Numa outra perspetiva, será que o facto de termos conhecimento destes casos não pode ser encarado como revelador de que, de certo modo, o sistema está a funcionar bem?
TS: Do ponto de vista da psicologia social, pensamos que é triste que tenhamos tanto que “nadar contra a correnteza” para aprendermos a nadar. Os casos de corrupção, impunidade e descaso são múltiplos, afetam uma parcela significante da população, e nos levam a um estado de constante vigilância e até mesmo nos fazem irônicos e descrentes de que mudanças substanciais são possíveis. O que está funcionando, inegavelmente, é a progressiva exposição desses casos para a população. No entanto, para que o sistema social e civil funcione de maneira justa e equânime, precisamos educar a população para desenvolverem uma consciência de cidadãos, uma consciência que os mostre os benefícios de elegerem representantes que realmente lutem por direitos humanos e ajam de acordo com esses princípios, e que nos façam restaurar a crença no sistema criado para garantir segurança, justiça, saúde coletiva e inclusão.

MB/MS

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