Temas de Capa

“A solução é tentar criar uma maior aproximação entre os povos” – Paulo Pereira

 

Paulo Pereira faz parte há muitos anos do Project First Nations, uma organização que partiu muito da experiência de um grupo de educadores que, ligados por um sentimento de profunda empatia, resolveram trabalhar no sentido de ajudar os jovens a estabelecer ligações através do desporto, das artes e de programas sociais.

Trata-se de uma organização sem fins lucrativos que pretende ligar jovens indígenas e não indígenas através da implementação de várias iniciativas educativas. O objetivo é criar uma ponte entre os jovens que residem no Canadá urbano e os jovens que vivem em comunidades remotas das Primeiras Nações em todo o país. Na sua página web encontramos esta declaração que elucida bem a essência e a real motivação da existência deste projeto: “Sonhamos com um Canadá com igualdade de oportunidades. Juntos, podemos promover a reconciliação e a unidade nacional, permitindo que os nossos jovens se tornem líderes”.

Por ter um contacto tão próximo com a população indígena pareceu-nos do maior interesse ouvir a sua opinião sobre as questões que levantamos nesta edição do Milénio.

Milénio Stadium: A terra onde nós vivemos é o somatório de territórios que foram ocupados sucessivamente por vários povos. Aqui no Canadá é assumido publicamente que, de facto, todos nós estamos a viver em territórios que foram retirados à população indígena com a colonização. Se eu lhe perguntar: afinal que terra é esta a que nós pisamos hoje? Quem é o proprietário desta terra? O que é que me responderia?
Paulo Pereira: Acho que é como diz o Indigenous Land Acknowledgment, a terra não pertence a ninguém, pertence ao Criador, não é? Portanto, eu acho que é nisso que mesmo o povo indígena acredita – que a Terra pertence ao Criador, pertence a Deus. Então, a terra é de todos, é nossa. Mas eu acho que o grande problema não é a quem pertence a terra é como a Terra foi conquistada? Aqui no Canadá, foi à força. E é por isso que eu penso que o povo indígena se sente lesado, não tanto pelo facto de a Terra nos pertencer a todos, mas a forma como o povo que aqui chegou depois deles se apoderou da Terra. De forma violenta.

MS: E até hoje, digamos, os danos causados com essa forma violenta de se apoderarem da Terra ainda não foram recompensados devidamente?
PP: Eu acho que este é um assunto que tem diversas filosofias. Pela minha experiência, penso que os povos que têm acesso por terra, estão mais ligados ao resto do Canadá. E eles sentem isso. Sim, sentem porque nota-se, obviamente, em muitas dessas comunidades que as condições de vida são muito diferentes do geral, do canadiano geral. Mas depois existe a outra parte, que são aquelas comunidades mais remotas, aquelas onde nós trabalhamos, que já não sentem tanto isso, não sentem tanto, não são tão confrontados com essa situação. Eles querem mais um pouco de atenção, mas não estão preocupados com esse facto histórico. Estão mais preocupados com as condições de vida que eles têm atualmente.

MS: Mas com a sua experiência de proximidade com a população indígena, o que é que seria necessário que o Canadá fizesse para ir ao encontro daquilo que eles desejam e daquilo que necessitam?
PP: É muito complicado. Para ser sincero, é complicadíssimo. O Governo está numa situação muito complicada, porque se o Governo se envolver diretamente com as comunidades e forçar alguma medida, obviamente que vamos voltar ao passado. As pessoas vão pensar – lá está o governo novamente a meter-se nos assuntos do povo indígena. O que o governo tem feito é atirar dinheiro ao problema, não é? E esperar que eles solucionem. Mas isto aqui é complicado porque o ser humano é naturalmente corrupto, não é? E aqueles que têm poder, normalmente, abusam um bocadinho do poder que têm e isso nota-se a todos os níveis, nota-se que este dinheiro, muitas vezes, não é utilizado da forma mais correta. Eu acho que o mais importante, penso mesmo que é a única solução de nós podermos trabalhar em conjunto, é criando amizades e criando uma proximidade maior entre os povos. E é isso que nós temos tentado com os mais jovens. E acho que é isto que nós temos que fazer de futuro, porque de outra forma nunca chegaremos a solucionar o problema. Isto vai de geração em geração e eu acho que temos que criar estas amizades, se calhar estas relações entre os povos para podermos solucionar isto. Eventualmente que não vai ser no nosso tempo, mas temos que trabalhar para isso.

MS: Como é que os indígenas que conhece encaram o facto de, em eventos de grande ou pequena dimensão, se ler com um ar solene o Indigenous Land Acknowledgment? Como é que eles encaram isso? É algo a que eles dão realmente valor ou consideram que são palavras vãs, vazias?
PP: Eles pensam que é uma declaração hipócrita, pelo menos aqueles com quem eu tenho falado, obviamente não posso falar por todos, não quero pôr palavras na boca deles, mas quando nós admitimos que estamos a ocupar o espaço que não nos pertence, porque é basicamente isso que se diz nessa declaração, é um bocadinho hipócrita. É, mas qual é a solução? Vamos todos sair daqui agora? Essa não é a solução mesmo, e não é isso que eles querem também, não é? Portanto, a solução é mesmo, como eu disse, é tentar criar uma maior aproximação entre os povos, maior compreensão, para que nós possamos, eventualmente, em gerações futuras, acabar com esta disparidade que existe entre o resto do Canadá e o povo indígena.

MS: Relativamente ao que disse o Presidente da República Portuguesa, como português, o que é que se sentiu quando ouviu aquelas declarações? O que é que considera ser importante reter?
PP: É complicadíssimo. O meu pai foi uma das vítimas da guerra colonial. Aquilo marcou-o profundamente, e continua a marcá-lo. Se ele que teve essa experiência durante três anos, penso eu, três, quatro anos, imagino aquele povo, o povo que esteve subjugado ao poder de Portugal e tudo mais. Mas é uma questão muito complicada e eu acho que isto aqui não tem uma resposta simples.

MS: Mas concretamente, o Presidente da República disse que é tempo de pedir desculpa formalmente, mas também falou em reparações financeiras. Acha possível fazer alguma coisa nesse setor?
PP: Eu pessoalmente sou contra isso, porque é muito difícil definir a quem é que devemos. A quem é que vamos fazer reparações? A quem? Obviamente, que um pedido de desculpas é importante, não é? E depois estreitar mais o relacionamento institucional entre os povos e tentar promover uma colaboração mais eficaz e mais proveitosa para todos. Penso que será uma forma de retificar os erros do passado. Mas acho que é muito complicado quando começamos a falar em entregar… como disse, pessoalmente, sou contra isso de reparações financeiras.

MS: Até porque seria difícil quantificar, não é?
PP: Exatamente. E depois também não é só quantificar, mas a quem vamos pagar? Ao Governo? Quem é que foi lesado especificamente? Foi um povo todo? Mas qual? O povo? Os avós? Os pais? É complicado. O que eu penso é o seguinte: o ser humano que usa do poder, independentemente da cor, da raça, do estatuto… quando temos poder, eventualmente, o ser humano acaba por abusar dele. Isso acontece em todos os lados. O que eu acho é que todos devemos algo. Todos os povos devem algo a outro povo, portanto, estamos todos em dívida e devemos ser todos perdoados se genuinamente queremos avançar e ter um mundo mais unido e melhor, porque nós temos que trabalhar em conjunto para podermos salvar o nosso planeta e podermos ter a paz que ainda não conseguimos. Há séculos que não temos paz. Acho deveria ser esse o grande foco, não é? Reparações? Penso que não será uma das prioridades, nesta altura. E o contexto histórico é muito importante. No caso do colonialismo aqui no Canadá, se formos a olhar bem para o contexto histórico, muitos dos próprios povos indígenas se aproveitaram da situação para melhorarem a sua condição. Portanto, somos todos culpados, no fundo. Obviamente, que há uns mais culpados que outros, mas, como disse, eu acho que temos que nos focar em melhorar o futuro. É a única forma que nós podemos reparar o passado é melhorar o presente e futuro.
MB/MS

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