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Direito de escolha

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Foi em 2007 que Portugal disse “sim” à despenalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) – até chegarmos a este dia e a esta importante e fraturante decisão foram precisos dois referendos e mais de 10 anos. Até 2008, o aborto era terceira maior causa de morte das mulheres em Portugal. Mas, felizmente, muito mudou de lá para cá.

Paula Pinto, psicóloga clínica e coordenadora da Sexualidade em Linha na Associação para o Planeamento da Família, aceitou responder às perguntas do nosso jornal, para que possamos entender melhor a realidade atual portuguesa no que à IVG diz respeito, numa altura em que o assunto tem estado na ordem do dia – ora pelo caso do projeto que poderá desproteger o direito ao aborto em cerca de metade dos estados norte-americanos, ora pelos polémicos critérios propostos pela Administração Central do Sistema de Saúde – e entretanto retirados -, que sugeriam, em traços gerais, que os médicos de família, assim como os restantes elementos das equipas, pudessem vir a ser avaliados por interrupções voluntárias da gravidez realizadas pelas suas utentes e ainda pela existência de doenças sexualmente transmissíveis nas mulheres.

milenio stadium - Paula_PintoMilénio Stadium: Apesar de terem passado já 15 anos desde a despenalização da interrupção voluntária da gravidez existem, obviamente, uma série de pontos a serem atendidos para que uma mulher possa passar por esse procedimento – isto quando o aborto é feito de uma forma legal. Conseguimos, de uma forma geral, fazer um resumo desse quadro legal?
Paula Pinto: No caso particular de interrupção voluntária da gravidez (IVG), efetivamente, desde 2007 e de acordo com a legislação vigor (http://www.apf.pt/aborto-e-interrupcao-da-gravidez) uma mulher que engravide e tome a decisão ou pondere interromper a gravidez poderá fazê-lo até às 10 semanas de gestação. Para iniciar este processo deverá dirigir-se ao centro de saúde ou hospital da sua área de influência e marcar uma consulta – designada consulta prévia. O local onde a mulher se deve dirigir varia em função da região do país e do modo como os serviços estão organizados para dar resposta aos pedidos de IVG. As assimetrias expressivas a nível do território nacional no que respeita ao acesso, neste caso em particular, às consultas de IVG, geram constrangimentos no acesso às mesmas, quer por implicar em muitos casos a deslocação de grandes distâncias, quer pelas questões de garantia de anonimato.
O processo de IVG passa por três etapas: a consulta prévia, seguida por um período de reflexão obrigatórios de três dias; a consulta de IG; e uma última consulta de revisão/planeamento familiar. (interrupcao-da-gravidez-por-opcao-da-mulher-guia-informativo-pdf.aspx).

MS: Quando procuram aconselhamento e acompanhamento relacionado com a interrupção voluntária da gravidez, as mulheres passam por algum tipo de processo antes de efetivamente tomarem a decisão?
PP: Por regra, a mulher quando decide iniciar o processo de interrupção de gravidez já fez a sua tomada de decisão. O modo como chega a essa tomada de decisão poderá ser mais ou menos complexo e variável de mulher para mulher. Contudo, a mulher pode a qualquer momento desistir de interromper a gravidez.
Durante o processo de IVG a mulher tem o direito de pedir aconselhamento psicológico e social, se assim o desejar.

MS: Será que muitas mulheres escolhem não procurar esse acompanhamento por medo de serem julgadas?
PP: As mulheres que procuram a APF para terem informação e aconselhamento sobre questões relacionadas com o processo de IVG, regra geral, pretendem ter mais informação sobre o que é necessário fazer para iniciar o processo e onde se podem dirigir. Em alguns casos, percebemos uma preocupação em explicar as razões pelas quais tomou essa decisão, como se precisassem de se justificar. Contudo a abordagem da APF é sempre no sentido de que a mulher não tem que expor as suas razões e/ou vulnerabilidades para justificar o seu pedido. São questões pessoais que ela poderá abordar obviamente se for importante para si, mas não no sentido de ter que se justificar, o que em parte pode estar relacionado com o receio de algum juízo de valor e/ou provar que não tomou a sua decisão de ânimo leve.
Contudo, embora não tenhamos números que indiquem quantas mulheres não procuram aconselhamento por receio de serem julgadas e/ou por questões de não garantia de anonimato, temos o relato de algumas mulheres que se sentiram alvo de juízos de valor no decorrer do processo.

MS: Em Portugal, tanto as mulheres como os homens têm direito a anticoncecionais gratuitos, que lhes são oferecidos pelos serviços de saúde pública. Conseguimos ter ideia do impacto que este apoio tem, na prática, na prevenção de gravidezes indesejadas?
PP: O Planeamento Familiar (PF) representa uma componente fundamental na prestação de cuidados em Saúde Sexual e Reprodutiva (SSR) que possibilita às pessoas, individuais e em casal, alcançar e planear o número de filhos desejados e o espaçamento dos nascimentos. A decisão de ter ou não filhos, assim como a escolha do momento para ter filhos, é um direito que assiste a todas as pessoas. Os serviços de PF incluem a prestação de cuidados de saúde, aconselhamento, informação e educação relacionados com a SSR.
Numa perspetiva mais abrangente, o PF deve: promover uma vivência sexual gratificante e segura; preparar uma maternidade e paternidade saudáveis; prevenir uma gravidez não desejada; reduzir os índices de mortalidade e morbilidade materna, perinatal e infantil; reduzir o número de Infeções Sexualmente Transmissíveis (IST).
Deste modo, o acesso a informação e serviços de SSR gratuita e de qualidade, incluindo o acesso gratuito a métodos contracetivos é fundamental para assegurar os direitos e bem-estar das pessoas: mulheres, raparigas, homens e rapazes.
O acesso a contraceção eficaz garante que todos os adultos e adolescentes podem evitar as consequências adversas na sua saúde e a nível socioeconómico de uma gravidez não desejada e ter uma vida sexual gratificante. O acesso a SSR é crucial para uma vida saudável.
A consultas de PF são gratuitas no SNS e estão disponíveis nos hospitais e centros da saúde para todas as pessoas em idade fértil. Estas disponibilizam, informação e aconselhamento sobre saúde sexual e reprodutiva, nomeadamente, aconselhamento contracetivo e obtenção gratuita de métodos contracetivos. Contudo a nossa experiência é a de que ainda há grande desconhecimento e informação sobre o funcionamento das mesmas: continuamos a ter relatos de mulheres que têm dificuldade em aceder a consultas de PF; que são informadas que deverão marcar consulta para o/a médico/a de família, quando não têm médico/a de família; jovens que querem uma consulta de PF mas que por questões de anonimato, não querem ir ao centro de saúde da sua área de residência mas que não conseguem consulta noutros centros de saúde.
A aposta deve ser, claramente, na prevenção e seguramente que o acesso gratuito a métodos contracetivos é fundamental para prevenir gravidezes não desejadas. O problema é que ainda existem muitos constrangimentos no acesso a estas consultas. Por outro lado, também é importante referir que não só é importante disponibilizar contraceção gratuitamente, mas que esta se adeque às rotinas e características das pessoas e casais. Por exemplo, uma mulher pode ter acesso gratuito à pilula contracetiva, mas se esta tiver dificuldade em lembrar todos os dias de a tomar então haverá sempre o risco de uma gravidez. É importante informar as pessoas dos vários métodos existentes e melhorar o acesso a diferentes métodos contracetivos, nomeadamente, métodos contracetivos de longa duração.

MS: Os dados da Direção Geral de Saúde não são atualizados desde 2018, mas a Eurostat divulgou que em 2019 foram realizadas mais 336 interrupções voluntárias da gravidez do que em 2018, contrariando assim uma tendência de descida que já se registava desde 2011. Como é que podemos explicar esta realidade?
PP: Infelizmente não tenho elementos para responder à sua questão. Seria importante ter acesso aos dados do relatório de 2019 da DGS para comparar resultados. Uma vez que a análise do decréscimo observado nos anos anteriores face aos números de IVG tem sido realizada com base na análise dos relatórios da DGS.
O Eurostat apresenta dados estatísticos, mas não tenho conhecimento da análise qualitativa dos mesmos.

MS: Com a falta de dados ficamos também sem saber como é que a pandemia pode ter – ou não – impactado o acesso à saúde sexual e reprodutiva… A APF consegue, neste momento, ter alguma noção da situação em que nos encontramos neste momento?
PP: Os dados dos relatórios correspondentes ao ano de 2020 e 2021 são indicadores que ajudarão com certeza a fazer um retrato mais fidedigno do impacto que a pandemia teve nos cuidados de saúde reprodutiva.
Em março e abril de 2020, quando ocorreu o 1º confinamento verificamos um aumento significativo de pedido de informação e aconselhamento relacionados com o processo de IVG.
O dobro dos atendimentos sobre IVG face ao período homólogo de 2019. E embora o total de atendimentos neste âmbito não permita uma análise relevante do ponto de vista estatístico, a análise qualitativa dos mesmos permite-nos a recolha de alguns dados que poderão espelhar a ocorrência de outras situações semelhantes:
As dificuldades apontadas estavam relacionadas por um lado, com o receio/medo de se dirigirem aos serviços de saúde devido à situação pandémica (medo de ficarem infetadas) ou a incerteza face ao funcionamento dos serviços, nomeadamente, se estaria ou não assegurada a resposta nas situações de IG. Por outro lado, tivemos o relato de mulheres que se deslocaram aos serviços de saúde e encontraram dificuldades em iniciar o processo, devido a vários constrangimentos: eram informadas de que a consulta de planeamento familiar não estava a funcionar e que seria através desta consulta que deveriam iniciar o processo; nas situações em que era necessário a realização da ecografia no serviço externo ao serviço de saúde, as clinicas para exames complementares de diagnóstico estava encerradas; após serem informadas nos serviços de saúde que deveriam fazer a marcação da consulta por telefone, não conseguiam estabelecer o contacto.
Contudo, apesar do início do processo, para algumas mulheres, ser marcado por uma dificuldade de comunicação para com os serviços de saúde, alguns destes serviços tiveram a capacidade de se reorganizarem no sentido de dar uma resposta efetiva aos pedidos que iam chegando.
As situações descritas, eram fonte de grande angústia e ansiedade, pela preocupação de poder ultrapassar o prazo legal previsto na lei para a IG. Ao mesmo tempo não podemos esquecer fatores associados de maior vulnerabilidade individual e social, derivados de uma situação pandémica nunca experienciada, do confinamento obrigatório que restringiu severamente a deslocação das pessoas e o acesso a transportes públicos, por exemplo.

Inês Barbosa/MS

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