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“A nossa história é agora parte da história do Canadá” – Domingos Marques

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Na verdade, cada ano que passa deve ser tempo de celebração, mas também é certo que quando o calendário nos recorda que já se passaram 70 anos desde que o Saturnia atracou em Halifax, à vontade de celebrar junta-se a consciência do que aqueles homens (e, logo depois, também as mulheres) fizeram por nós, os que percorremos hoje os caminhos que foram desbravados por eles. Em cada história de vida revelada percebemos o sacrifício, as provações, o árduo trabalho que enfrentaram com uma coragem desmedida, muito acionada pelo desejo de ter uma vida digna neste país de acolhimento. A vida que a terra-mãe não lhes havido proporcionado.

Não foram dias, meses e até anos fáceis, mas a resiliência e a vontade de vencer foram mais fortes. A esmagadora maioria desses bravos pioneiros conseguiu atingir o grande objetivo e deixou o maior legado que se pode herdar – a prova de que com trabalho e determinação tudo pode ser alcançado.

E com eles também aprendemos todos que para compreendermos o presente é fundamental conhecer o passado. E esta premissa é válida para tudo na vida das pessoas, dos países e do mundo. É por isso que a história destes homens e mulheres tem que ser conhecida, divulgada e honrada.

Domingos Marques já há muitos anos que se deixou fascinar pela história da comunidade portuguesa, onde se insere desde que chegou a Toronto em plenos anos 60. Com o seu profundo saber e generosa colaboração com o jornal Milénio temos aprendido muito nos últimos meses e nesta edição dedicada ao programa de comemorações dos 70 anos de presença portuguesa no Canadá, não podia faltar uma conversa com quem seguramente sabe mais do que nós sobre este tema.

domingos marquesMilénio Stadium: Há 70 anos chegou o Saturnia carregado de homens que acreditavam que aqui poderiam ter uma vida melhor do que a que tinham em Portugal. O que se sabe da vida dos primeiros que cá chegaram é revelador de um desfazer dos sonhos (numa fase inicial), que se tornaram em verdadeiros pesadelos.
Tratando-se de um acordo bilateral entre o Canadá e Portugal, ou seja, de um quadro de imigração absolutamente legal o que falhou na época para que situações de autêntica escravidão tenham acontecido?
Domingos Marques: Bom… vamos por partes.
Sim houve alguns casos de “escravidão”, mas não teve a ver com falhas no acordo bilateral. As regras estavam todas lá, mas nem sempre se cumpriram, de parte a parte. Infelizmente situações dessas acontecem até nos dias de hoje. É afinal o grande pesadelo do emigrante que vai à frente e chega a uma terra desconhecida, sem falar a língua. Por isso são chamados os pioneiros. Essa palavra descreve alguém que é o primeiro a abrir caminho através duma região mal conhecida. O desbravador tem sempre a vida mais difícil. Foi o que os nossos pais e avós fizeram. E tantas vezes nos esquecemos disso. Os portugueses que chegaram a Toronto, a partir dos anos 80, terão sempre dificuldade em compreender tais pesadelos.
Uma outra questão tem a ver com o que era o Canadá há setenta anos. Em Toronto, por exemplo, a maioria dos seus habitantes eram descendentes ou tinham imigrado do Reino Unido, eram protestantes e não católicos, na sua maioria. Os imigrantes italianos foram os primeiros a enfrentar a discriminação prevalente da população anglo-saxónica em geral e nós usámo-los de certa forma como para-choques, à medida que fomos formando as nossas próprias instituições comunitárias.
Finalmente, a questão da sua fé em conseguir uma vida melhor do que a que tinham em Portugal: claro que conseguiram, porque a sua vida era ruim de mais. A grande maioria dos portugueses vivos, principalmente os mais jovens, nunca entenderão totalmente como era difícil a vida em Portugal, nos anos 50 e 60. Por isso a grande maioria realizou os seus sonhos, que não era necessariamente ganhar fortuna. Era sim sair da miséria, e dar um futuro aos seus filhos. E isso os nossos pais fizeram. A questão inclina-se mais para o lado do custo, qual foi o preço? Alguns pagaram talvez caro demais.

MS: A partir de que momento as coisas começaram a melhorar e chegada a este país passou a ser mais acolhedora?
DM: Eu diria que, no caso dos portugueses de Toronto, levou aproximadamente 25 anos. Os alicerces da comunidade portuguesa estavam lançados, quando, em 1978, completei o meu primeiro trabalho sobre a nossa história no Canadá, – Imigrantes Portugueses, 25 Anos no Canadá. Fechava o livro com as seguintes palavras: “Com a mesma determinação e persistência de há 25 anos, caminhamos confiantes, rumo ao futuro, sem medo de lutas ou conflitos, dando as mãos a todos os que, independentemente da raça, religião, língua ou cor, queiram construir uma nação unida, um Canadá livre, uma sociedade justa”. Hoje atrever-me-ia a dizer que teriam sido palavras proféticas se tivéssemos alcançado tudo. Mas o trabalho continua.

MS: Quais foram, na sua opinião, os momentos-chave do percurso da comunidade portuguesa no Canadá e, nomeadamente, na Grande Área de Toronto?
DM: Para uma comunidade em formação todos os pequenos passos foram, e continuam a ser, momentos-chave. O primeiro português que abriu um negócio, o primeiro que comprou uma quinta ao seu patrão agricultor, o primeiro bebé nascido de pais portugueses, os primeiros jornais, o primeiro programa de rádio, o primeiro português formado na universidade, o primeiro português eleito a nível municipal, provincial, ou federal, o primeiro-ministro dum governo provincial, e muito em breve, quem sabe, a primeira mulher portuguesa eleita presidente da Câmara de Toronto.
A nossa história é feita de todos estes primeiros passos e bons momentos. Mas também é feita das pequenas querelas que foram impedindo coisas de acontecerem; ou porque não gostávamos da pessoa que estava à frente do projeto, ou porque era do partido errado, ou porque simplesmente tínhamos inveja do tipo que, constantemente, se punha em bicos de pés à nossa frente e não o iríamos tolerar.
E depois também não podemos esquecer quando demos alguns passos para trás, que também nos ajudaram a crescer. O primeiro português que foi condenado por ter defraudado compatriotas seus, o primeiro português que foi preso porque matou alguém ou por adulterar listas eleitorais!
Tudo isso é a nossa história. Como toda a história humana que tem o bom e o mau. Mas todos os dias a avançar, passo a passo, para uma afirmação cada vez maior, neste grande país, que é o Canadá, agora também a terra dos nossos filhos. Nunca devemos esquecer, porém, que os britânicos, com uma força militar mais poderosa, a conquistaram aos indígenas. E ao assumirmos a nossa integração na sociedade canadiana, também somos parte dessa herança que tanto maltratou os indígenas. Eram eles os donos desta terra que também comprámos com o nosso suor, mas nos obriga a lutar por uma sociedade mais justa para todos.

MS: Na sua opinião que importância deve ser atribuída à preservação da história da imigração portuguesa no Canadá? O que pode e deve ser feito para que essa história seja mais divulgada, principalmente junto da geração mais nova?
DM: A nossa história é agora parte da história do Canadá. E na minha opinião só pode ser vista dessa forma. Como é, aliás, a história dos italianos, dos chineses e de todos os outros povos que para cá emigraram. Os nossos filhos já são canadianos e cada um vai querer saber da história individual da sua família, dos seus pais, avós, e agora até já dos bisavós. Mas essa já não é uma história portuguesa. Será contada noutra língua. E se um dia fizerem um filme não será a preto e branco como era quando eles chegaram! Certamente que nós vamos continuar a lembrar e a comemorar datas como a do desembarque do primeiro grupo de imigrantes portugueses em Halifax. Como eu disse na primeira crónica que escrevi aqui no Milénio há seis meses,,são ações de memória intrínsecas ao ser humano que nos permitem refletir criticamente sobre o passado e, são ao mesmo tempo, fonte de muitas lições para futuras gerações.

MS: Olhando para a história da presença portuguesa no Canadá, o que acha que mais se destaca? Quais as marcas mais significativas que os portugueses têm vindo a deixar na sociedade canadiana?
DM: O país é enormíssimo e multirracial. Nós somos uma gota no oceano. Muitas vezes considerados “invisíveis”, a integração faz-se naturalmente e essa realidade tem muito de positivo. Não temos nada que nos destaque e que nos faça ser discriminados pela nossa cor de pele, religião, como acontece, por exemplo, com o meu genro que é jamaicano, ou os muçulmanos que vieram da Somália.
Marcas deixadas pelos portugueses na sociedade canadiana?
Não consigo pensar em muita coisa. O pastel de nata? A sardinha assada? The While Fleet na Terra Nova? Temos gente que se vai distinguindo nas artes e letras. Penso na Nelly Furtado e no Shawn Mendes, no Anthony De Sá com a sua obra literária. O Dale Brazão que ganhou os mais altos prémios do jornalismo no Canadá. Muitos homens e mulheres de negócios que têm alcançado indiscutível sucesso.
Mas eu diria que o mais importante troféu deve ir para os anónimos imigrantes portugueses, que não aparecem nas páginas dos jornais nem no nosso Walk of Fame: aqueles que com capacidade, perseverança e trabalho honesto conseguiram dar um futuro melhor aos seus filhos que somos todos nós.

Madalena Balça/MS

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