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“Esta Páscoa tem um sentido redobrado de sonho de ressurreição”

Frei Fernando Ventura

frei fernando ventura - milenio stadium

 

A Páscoa e o sonho da ressurreição em tempo de luta pela vida, de fuga da morte. A esperança que a renovação nos deve transmitir, tantas vezes nos abandona, quando somos inundados diariamente por números de mortos e feridos, seja de uma pandemia que parece não ter fim, seja pela guerra imposta pelos homens (muito pouco crentes em Deus, por certo, já que parecem acreditar ser donos do destino dos seus pares).

A Páscoa e a celebração de uma ressurreição que parece cada vez mais distante e inalcançável. Que sentido faz celebrar este tempo pascal tal como é descrito pela religião católica? Será que o lado da celebração pagã vai vencer – festejar as árvores que voltam a florir, as flores que se mostram e explodem beleza e cor, as idas à praia ou o simples regresso do sol?… Que motivos temos para celebrar nesta Páscoa ainda envolta em mantos de morte e incerteza?

Frei Fernando Ventura é franciscano capuchinho, teólogo e biblista. Foi professor de Ciências Religiosas em Aveiro. É intérprete na Comissão Teológica Internacional da Santa Sé. Colabora, como tradutor, com diversos organismos internacionais, como a Ordem dos Capuchinhos e a Federação Bíblica Mundial. Autor do primeiro estudo sobre Maria no Islamismo, lançou o livro Roteiro de Leitura da Bíblia, ministra cursos e retiros, percorre o mundo e deu-nos o privilégio de partilhar connosco algumas ideias sobre a Páscoa e o significado que lhe poderá ser atribuído, neste ano de 2022, depois de Cristo.

Milénio Stadium: Este período pascal é, na perspetiva católica, o momento de celebração da ressurreição de Cristo. Até que ponto pode ser inspirador, nos dias de hoje, este conceito de renovação, do “viver de novo”?
Frei Fernando Ventura: Mais do que nunca, este é o tempo de sonhar ressurreição. E o mundo inteiro está nesta Quaresma que, infelizmente, parece que se vai prolongar. Mais do que nunca importa sonhar a paz, importa sonhar a ressurreição, importa sonhar o equilíbrio das relações, que é isso que está de novo a desequilibrar tudo. É a ressurreição do Caim. Aquilo que estamos a viver não é a ressurreição de Cristo. Quem ressuscitou nestes últimos tempos foi o Caim, o Caim que mata o Abel. Etimologicamente, a palavra Caim tem a ver com alguém que é tudo o que se julga ser tudo, o senhor absoluto de tudo – que tem que matar o outro e o outro é o sempre. Há um texto famoso, creio que é do Gil Vicente, que é o “Todo o mundo e ninguém”- é e muito. Isto é, a figura ressuscitada pelo fantasma, que não é fantasma, é a realidade infelizmente da guerra, é outra vez o Caim. São os Caim sempre da história que fazem dos Abeis os sofredores do seu egoísmo e da sua mania de omnipotência. E, por isso, mais do que nunca este é tempo de sonhar a Páscoa e de construir ressurreição, naquilo que cabe a cada um de nós no seu pequeno mundo de luta contra as nossas pequenas ou grandes guerras que vamos tendo connosco e com os outros e sonhar a paz. E por aí, mais do que nunca, esta Páscoa tem um sentido redobrado de sonho de ressurreição.

MS: Hoje há cada vez mais “fiéis” para quem a Páscoa mais não é do que uma ótima oportunidade para tirar uns dias de férias, ou seja, que já não celebram a Páscoa na perspetiva religiosa. O que aconteceu para que esta seja cada vez mais uma realidade de muitas famílias (ditas) católicas?
Frei FV: Não estamos em época de mudança, estamos numa mudança de época – com tudo aquilo que ela significa de positivo e de negativo, neste sentido de uma autonomização da vida em que, infelizmente, não me parece que tenha a ver com um acréscimo de humanização das relações, mas mais com o acréscimo da solidão relacional. E o facto das grandes festas, estamos a falar da Páscoa, mas podíamos falar no Natal também, aquilo que são festas marcadamente religiosas, que marcaram o ritmo da vida de gerações, hoje é vivido muito mais na dimensão do eu, na dimensão do pequeno espaço da não capacidade ou da capacidade que vamos perdendo, da dimensão do outro e da dimensão da comunidade. Então, o que está em causa? Digo sempre, o que está em causa não é a fé, o que está em causa é a vida. A vida é cada vez mais vivida num espaço muito limitado, de relações muito limitadas. Porque ter essa relação com os outros é sempre alguma coisa que nos desequilibra, que nos obriga a sair de nós. A tendência da época, que estamos a experimentar todos, é baseada no solipsismo, que é uma tendência mais do eu, em que se vai perdendo a dimensão do nós e o grave disto é a dimensão do “nós” que se perde e a dimensão do “eu” levado ao exagero e ao exagero do consumo. Porque aqui há outra mudança de paradigma também, o paradigma hoje é “ter para ser”, quanto mais se tem, mais se é ou aparentemente mais se é. É um paradigma que mudou a ideia do “ser para ter” e ter, não no sentido de se possuir objetos, mas de ter um espaço alargado relacional. Hoje o “ter para ser” é o resultado e também ponto de chegada do consumismo que nunca, nunca estará satisfeito, por isso tanta desilusão do ser, porque o ser não se atinge pelo ter.

MS: A propósito, há muito que se fala que a Igreja Católica precisa ela própria de se renovar. Entre outras razões, para que assim seja possível cativar mais gente nova que, como se sabe, está cada vez mais afastada das práticas religiosas. Acredita que com o Papa Francisco ainda vai ser possível desenvolver esse trabalho de renovação profunda da Igreja?
Frei FV: Nós temos a experiência do nosso chamado mundo ocidental e aqui sim, temos uma diminuição de quantidade. Oxalá corresponda a um aumento de qualidade, mas a sensação de esvaziamento das Igrejas… voltamos à questão de há pouco. O que está em crise não é a fé, o que está em crise é a vida, o que está em crise, são as relações. Então, se não vivo relações na vida “normal”, fora da Igreja, não tem sentido celebrar. Ou seja, quem não celebra a vida também não tem sentido de celebrar a fé. A questão está por aí e isto é como uma pecha, que acontece no chamado “primeiro mundo”, “mundo ocidental”, que é um exacerbamento do “eu” que corresponde à perda relacional à sua volta. E a vida comunitária, a vida paroquial, a vida celebrativa da fé, é essencialmente comunitária e paga a fatura justamente do “fechamento” do “eu”, que não se abre ou que tem dificuldade em se abrir ao outro. Há uma palavra que o Papa Francisco direciona à Igreja e à sociedade, que é a autorreferencialidade. Ou seja: eu sou a medida de mim próprio, a Instituição é a medida dela própria. E isto destrói, obviamente, e muito daquilo que o Papa Francisco tem dito e feito, que é justamente tentar ir ao arrepio de tudo isto. Se vai ser no tempo dele que as coisas vão mudar no mundo ocidental? Se calhar não, não sei. Mas isto não implica que não haja muitíssima gente comprometida, comprometida em fazer diferente e em construir relações redimidas. E isso agora é um processo que não se terminará no tempo, porque é um processo continuado no tempo e é um processo que vai ao arrepio da corrente dominante que é outra vez (e peço desculpa de me repetir) esta corrente dominante do “eu”, em desfavor do “nós” e aí leva por arrastamento tudo. Mesmo a nível das famílias, a família alargada não existe. As festas de família que há uns anos atrás eram celebradas com tanta gente, hoje cada vez mais de cada núcleo familiar celebra os seus acontecimentos e a sua vida dentro do seu núcleo familiar. Há um fechamento generalizado ao trazer, no chamado mundo ocidental. Há um fechamento generalizado ao alargar para além do núcleo, ao alargar para além do espaço de segurança, do espaço onde nos sentimos em segurança e não nos sentimos de alguma maneira provocados pela presença do outro.

MS: E, portanto, na sua perspetiva, isto tem mais que ver com o “eu”. Neste contexto, por exemplo, vamos falar dos jovens: É uma mudança que terá, eventualmente, de surgir até dos próprios, jovens, perante a sociedade e a forma como se relacionam e não tanto da Igreja, é isso? Acha que a Igreja então não teria um papel aqui nesta mudança…?
Frei FV: A Igreja paga a fatura, obviamente, de uma mudança de estilo de ser na sociedade, mas também paga a fatura de alguma autorreferencialidade, ou seja, de se sentir senhora absoluta da verdade e sem necessidade de partir ao encontro outro. A dimensão da missionaridade sem ser proselitista, mas é uma missionaridade que significa estar no mundo e estar na história, aliando a história e o mundo, que precisa de gente que queira ser gente com gente e que vai ao arrepio da solidão que nos vai matando.

MS: O mundo vive dias muito difíceis, entre muitas outras razões, por causa da Guerra na Ucrânia. Qual o papel da Igreja Católica numa situação como a que estamos a viver?
Frei FV: É o papel de qualquer ser humano, que é o papel da criação de humanidade e de paz. As igrejas, as comunidades religiosas e as religiões têm um papel neste momento de fazer com que se criem espaços de convivialidade e de paz e educação para a paz. E as religiões aqui têm muito que bater com a mão no peito. E tem muito que arrepiar caminho. Aquilo que foi a construção secular de ódios de estimação, que foram criando barreiras, que foram criando impossibilidades de comunhão. Felizmente, estamos a assistir a uma abertura e a uma mudança de sensibilidade a este nível e isso é muito positivo.

MS: O Frei Fernando Ventura muito tem contribuído, com o seu trabalho em São Tomé e Príncipe, para a renovação da esperança. Como está o seu projeto do Banco de Leite?
Frei FV: O projeto chama-se Banco de Leite de São Tomé e Príncipe. Aqui em Portugal não pode ser registado com esse nome. Nós somos uma IPSS. Não foi possível registar com o nome de Banco de Leite porque já existe o Banco de Leite Materno, por exemplo, há regras nas nomenclaturas. Mas o Banco de Leite de São Tomé e Príncipe, em Portugal, chama se Associação Amparo da Criança. Aquilo que nós estamos a fazer é ser testemunhas diárias de milagres. Para ter uma ideia, nós estamos a acabar agora de construir a casa dos idosos e nos últimos dois anos passámos de uma dívida gigante para algo bem menor. Do orçamento total de 317.000 €, neste momento falta-nos 30.000. Isto foi conseguido em dois anos. Ao mesmo tempo, nestes dois anos conseguimos lá colocar de 15 contentores de 20 pés, 5.580 quilos de medicamentos. E mensalmente estamos a conseguir colocar uma tonelada e meia de leite em pó, que significa uma despesa de 6.231,00 €. E isto feito como donativos que vão chegando, às vezes de 3 €. A casa Betânia tem sido isso. Aliás, a casa vai ter um letreiro e onde vai estar escrito “Dos pobres para os pobres”. Foram os pobres que pagaram aquela casa para a terceira idade. Para o Banco de Leite trabalhamos, sobretudo, no apoio de crianças e idosos, porque são as duas faixas sociais mais necessitadas, porque é um país que vive em situações menos confortáveis, em que as pessoas procuram imigrar. Na Ilha do Príncipe procura-se imigrar para a ilha de São Tomé, e da ilha de São Tomé, procura-se emigrar para o estrangeiro e muitas vezes, as pessoas que emigram ficam às vezes em condições de se poderem bastar a si próprias, o que fará ainda apoiar a família que ficou na terra. Há uma necessidade de grande apoio e de acompanhamento, sobretudo das crianças e dos idosos.

MS: Têm também muita ação em Portugal, certo?
Frei FV: Sim. Temos também, infelizmente, em Portugal muitas necessidades a serem respondidas. E então o tipo de produtos que nós mexemos é sobretudo alimentação, material escolar, medicamentos, material desportivo também para as crianças. Mas há muita alimentação, por exemplo, que nós não podemos mandar para São Tomé, por questões logísticas. Não se pode mandar leite líquido, por exemplo, ou enlatados, porque as temperaturas são muito altas, tem de ir em contentor, enfim. Portanto, nós temos muita, muita ação também em Portugal, ligados a outras instituições, que este tipo de trabalho não se faz sem ser em rede, não é possível se não for assim. Cada um, naturalmente, defendendo a sua causa, mas estando também aberto à colaboração. E aí só assim é que faz sentido.

MS: Sentiu que pandemia abrandou um bocadinho a entrega de donativos ou as pessoas mesmo assim continuaram a dar o que podem?
Frei FV: Com a pandemia houve um abrandamento, de facto, e agora a nível da Europa, em quase toda a Europa, tem havido uma movimentação ou uma adesão em massa de apoio à Ucrânia. Neste momento, o foco está mais na Ucrânia. Vamos esperar que as coisas se acalmem e que seja possível ir dividindo o mal pelas aldeias. Agora a urgência e a resposta em massa está a ser para a Ucrânia.
Catarina Balça/MS

Catarina Balça/MS

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