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Soldados de ontem e de hoje… Um pensamento para as famílias nesta quadra

Havia um burburinho diferente na rua 24 de Agosto, no Pico da Pedra. Como de costume, ia-se à janela, olhava-se para a direita e olhava-se para a esquerda, na esperança de algum evento fora do vulgar, que viesse animar a monotonia do lugar. Já o padeiro, o vendilhão e o homem do leite haviam passado. Mas, um acontecimento estava para se desenrolar naquela amena manhã, que viria a cunhar a história da pacata freguesia.
Pacata por fora talvez, porque por dentro dramáticas horas marcavam o evoluir daquele dia. Na Canada dos Cedros uma jovem esposa, com um filho a nadar no ventre, despedia-se do seu companheiro. Ele, sem grandes palavras para o momento e, coagido pelas aberrações do colonialismo português, procurava acalmar a angustia da família, que se despedia de mais um soldado a caminho da Guiné.
Os autocarros (camionetas) eram mais escassas naquele tempo. As paragens, muito poucas e com longas distâncias entre si. Por isso, o soldado teve de percorrer a pé a 24 de Agosto, para apanhar o transporte junto à igreja paroquial.
Como muita gente, vim também à janela, seguindo os passos de minha mãe, que tal como a maioria das mulheres da freguesia, sabia da sua partida e há muito vinham aquecendo as conversas, em torno daquela “desgraça”, de um rapaz tão novo, quase a ser pai, ir para África.
Finda a difícil despedida dos familiares, o “nosso” soldado dizia adeus à aldeia, que o vira crescer. As portas e janelas encheram-se de vizinhas, que desejavam lançar mais um olhar ao soldado, desejar-lhe boa sorte na aventura da guerra, que o esperava.
Ele olhou para mim. Fitou-me por breves momentos Acho que sorriu, com os seus olhos verdes. Tinha eu então uns nove ou dez anos. Os gritos angustiosos da jovem mulher ouviam-se da minha janela. Ele não olhou mais para mim.
Os meses da guerra sucederam-se uns após outros, acompanhados de cartas raras, que se abriam com o coração nas mãos. A última, vinha acompanhada de dinheiro, para que a jovem mãe adquirisse um casaco novo e roupa para a criança, pois o soldado estava de volta. A festa em casa anunciava-se, e a freguesia preparava-se para receber o seu filho.
Mas a mina adiantou-se na hora e explodiu, destruindo a viatura na Guiné, matando o “nosso” soldado. Ela vestiu-se de luto e cobriu-se com um xaile negro, que nunca mais abandonou. Fomos recêbe-lo à igreja. Acariciei o caixão pesado e envernizado. Consegui furar a multidão para lhe tocar. “Estás ai?” perguntei.

O soldado às gargalhadas abraçou o companheiro e deixou a estacão de metro da Dufferin. Olhou para mim e pediu desculpa, por ter gargalhado tão descontroladamente. “I am sorry”, disse-me, o soldado, que nunca mais irei ver, a sorrir assim, tão desmesuradamente…

Por Humberta Araújo

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