Luís Barreira

A Restauração de Portugal, os ciganos e… Marcelo!

 

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A não ser a polémica que há uns anos atrás se instalou em Portugal, sobre se se devia manter ou extinguir o feriado do 1° de Dezembro, não me lembro que esta data tivesse dado origem a controvérsias como aquelas que o nosso Presidente da República suscitou, ao comemorar este ano a Restauração de Portugal. “Viciado” em opinar sobre todos os assuntos e indiferente (aparentemente…) às consequências das suas palavras, Marcelo Rebelo de Sousa foi aos anais da nossa história encontrar o leitmotiv para sinalizar esta data.

O Presidente decidiu destacar o papel da comunidade cigana na restauração da independência de Portugal em 1640, afirmando que se deveria “lembrar também os portugueses de etnia cigana que, como reconheceu então o próprio Rei D. João IV, deram a vida pela nossa independência nacional” e reconhecer que “este dever de memória é de elementar justiça e rompe com tanto esquecimento e discriminação de que os ciganos têm, infelizmente, sido alvo no nosso país.”

Evocar um facto histórico que permanecia “escondido” nas páginas bolorentas da nossa história do século XVII, a assinalar o golpe revolucionário de 1640 que acabou com o domínio da dinastia filipina sobre Portugal, parece-me uma curiosidade assinalável para todos aqueles que desconheciam esse facto histórico (como o deputado e dirigente do Chega) em que centenas de ciganos lutaram pela libertação de Portugal sob o domínio da dinastia filipina desde 1580, após o desaparecimento, sem descendentes, do jovem rei D. Sebastião em África, na Batalha de Alcácer-Quibir.

De facto, pelo alvará de D. João IV, em 1649, o rei determina que as ordens de prisão e degredo, aplicáveis em geral aos portugueses ciganos, não deveriam ser aplicadas “aos mais de 250 ciganos alistados que estavam servindo nas fronteiras, pelo que receberiam licença “para morar em lugares e vilas do Reino naturalizados com cartas de vizinhança”. O que pressupõe que D. João IV, que tinha promulgado a prisão e degredo dos ciganos do território continental para as colónias, por considerar que os ciganos se tinham assimilado ao inimigo espanhol, libertava dessa expulsão todos aqueles que se alistassem no exército português, o que aconteceu com os tais 250, demonstrando-se que esse alistamento dos ciganos não foi feito na base do seu voluntariado, mas sim para evitar o degredo desses elementos e permitir a presença dos portugueses ciganos nas lutas pela independência, com a possibilidade de poderem viver livremente nas aldeias e vilas de Portugal, desde que deixassem de usar os seus trajes e de ler a sina e não lhes retirando os filhos a partir dos nove anos de idade.

Mas para Marcelo Rebelo de Sousa, a sinalização da comunidade cigana à data, homenageando-a e denunciando a discriminação de que tem sido alvo em Portugal, não é apenas um simples episódio da nossa memória histórica, ela pretende ligar-se à nossa atual realidade, em pleno séc. XXI e, como tal, torna-se polémica e geradora de comentários a favor e contra essa homenagem, num momento em que a crueldade discriminatória contra a etnia cigana, praticada no séc. XVII já não existe, embora possa persistir um outro tipo de segregação.
De um ponto de vista meramente pessoal, se é verdade que ninguém ameaça hoje a etnia cigana com o degredo, a impossibilidade de usarem as suas vestes, de lerem a sina, de viverem nas cidades, vilas ou aldeias de Portugal, de manterem as suas tradições culturais (não contraditórias com as leis e a moral nacionais…), garantindo-lhes os apoios institucionais que são extensivos a toda a população portuguesa, também é verdade que uma parte significativa dessa comunidade não se tem esforçado suficientemente para se integrar no resto da sociedade, ao manter uma atitude nómada e de afastamento da vivência com o resto da população, fazendo com que esse “fechamento” possa ser interpretado como uma forma de preservar uma sua identidade própria, tornando-os imunes à influência do resto da sociedade e, ao mesmo tempo, à sua participação efetiva na vida coletiva da sociedade.

Se uma parte significativa da opinião pública portuguesa considera que o comportamento da etnia cigana no país é abusivo no cumprimento das normas nacionais, dedicando-se muitas vezes a negócios ilícitos, roubos e usando de meios violentos nas suas relações com o resto da população, poderemos também tentar perceber que tais comportamentos podem não ter nada a ver com a eventual natureza selvagem ou desumana desses cidadãos, mas como uma atitude de retaliação (igualmente condenável) de elementos dessa etnia, face a qualquer forma de discriminação popular de que são objeto há mais de cinco séculos ou, por outro lado, uma consequência anti-social do isolamento a que voluntariamente se têm sujeitado.

Enfim, “para dançar o tango são precisos dois” pelo que, se as duas partes não se esforçarem para se respeitar na mesma medida, reconhecendo que devem privilegiar as condutas instituídas na sociedade portuguesa, sem excluir a possibilidade de a comunidade cigana manter tradições culturais que lhe são próprias e não contraditórias com os valores e comportamentos públicos mais gerais da nossa sociedade, a discriminação de que se sentem alvo poderá ir sendo atenuada.

Mas, para que estas afirmações do nosso Presidente da República, não se resumam a constatar o que toda a gente reconhece e possam ir mais longe na tentativa de resolução deste problema, é necessário um extensivo trabalho técnico de especialistas, por forma a apurar onde se encontram os problemas de entendimento entre as partes e um longo trabalho de sensibilização das comunidades em presença, que não se pode reduzir a simples manifestações esporádicas de boa vontade.

Luis Barreira/MS

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