Aida Batista

Os herdeiros de memórias

herdeiros - milenio stadium

 

A única coisa que une os
portugueses é Portugal.
Onésimo Teotónio Almeida,
A Obsessão da Portugalidade.

 

 

No âmbito da “Temporada Cruzada França Portugal”, realizou-se uma iniciativa, promovida pela Comissão de Migrações da Sociedade de Geografia de Lisboa, em parceria com o Observatório dos Lusodescendentes, que tinha como título “Memórias de Família com Futuro – três vagas de migrações para França”.

Para todos nós, a maior vaga de emigração iniciou-se nos finais da década de 50 e na de 60 do século passado. Graças a este evento, e à projeção do filme/documentário, realizado por Paulo Correia, “Os Herdeiros da Batalha de La Lys”, ficámos a conhecer uma anterior, resultado da participação dos portugueses na I Guerra Mundial, em França. Terminada a guerra, a maioria dos soldados sobreviventes foram deixados ao abandono. Tendo em conta que somos animais gregários por natureza, estes jovens, apesar da barreira da língua, acabaram por se casar com francesas, juntando a sua solidão à solidão daquelas cujos maridos, noivos e filhos tinham partido e morrido na guerra. Neste encontro de solidões, nasceu uma geração de filhos e netos que conservam a memória da guerra contada pelos pais e avós.

O filme de Carlos Pereira, que em breve espero ver na televisão e nas salas de cinema do nosso país, é um belíssimo e comovente registo sobre um período esquecido, muito pouco falado, e que nem sequer faz parte dos manuais escolares. Quando se fala da vitória dos Aliados, nunca se faz referência à participação e importância dos portugueses para esse desenlace, nem se evoca a memória dos que lutaram e morreram em nome na defesa dos valores de uma Europa que hoje conhecemos.

Uma das maiores riquezas deste documentário é a de poder contar com os testemunhos vivos de descendentes desses soldados, vozes que, na primeira pessoa, nos transmitem o pudor em volta de um tema pouco ouvido em casa, ou até votado ao silêncio, como se eles sentissem alguma culpa por terem sobrevivido, depois de tantas vezes terem carregado nos braços a morte de muitos dos seus maiores amigos.

Os nossos – maioritariamente analfabetos, sob a tutela do exército britânico e sem poderem comunicar por não conhecerem a língua – ao contrário dos restantes, rendidos de três em três, nunca chegaram a ser substituídos. Tiveram de aguentar um ano inteiro nas trincheiras, mal equipados, sujeitos à chuva, à lama, ao rigor dos invernos, completamente entregues à sua sorte. Do seu país, pouco ou nenhum apoio receberam durante e depois da guerra. Nestas alturas, dói-nos sermos confrontados com esta realidade – uma pátria que abandona os filhos depois de os enviar a cumprir uma missão, que não entendiam: defender? o quê? porquê? Na sala, uma bisneta de um dos soldados, deu o seu comovido e presencial testemunho em francês. No filme, o filho de um dos sobreviventes descreveu, de forma muito emotiva, por que levou terra de Portugal para colocar sobre a campa do seu pai.

Na minha segunda missão à Guiné, tive o privilégio de partilhar esse período com a neta do “Soldados Milhões”, cuja vida deu origem ao filme com o mesmo nome. Nas nossas conversas, falámos do seu avô e de como ele recusava o fato de herói, porque, para ele, não havia nacionalidades. Vidas eram vidas, cujo futuro por viver não deveria ter sido interrompido. Sim, reconhecia, matara, muitos, para salvar os seus camaradas, mas não se orgulhava disso. Aceitou a condecoração atribuída, mas recusou receber a arma com que lutara, a sua “menina”, como lhe chamava. Encontra-se num museu, porque, em tempo de paz, é o lugar onde devem “jazer mortas e arrefecidas” como tantos meninos de sua mãe que, haviam ficado “no plaino abandonado, de balas trespassados”, como nos descreve o poema de Fernando Pessoa.

Aida Batista/MS

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