Aida Batista

Descobrir mundos

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Chegámos a 2023. Saltámos a fronteira invisível que separa o ano velho do novo, marcada pela contagem decrescente dos segundos, num ritual de quem se quer livrar do ano velho e atirá-lo para o espaço. O momento de gritar “zero” é acompanhado pelo ruído da rolha a soltar-se da garrafa de espumante, a que a maioria, por presunção, chama champanhe. Este instante obriga a mudar de calendário e a acrescentar um simples dígito à data. É este número que, nos primeiros dias, por não fazer ainda parte dos novos hábitos, nos obriga a pensar: já estou no novo ano. E, como é habitual, pronunciar a estafada frase: “Ano Novo, Vida Nova”, como se um simples número tivesse o condão de satisfazer os desejos ordenados numa lista que, quase sempre, fica por cumprir.

Mas este ano é especialmente diferente dos anteriores, porque se celebram os 70 anos da chegada oficial dos Portugueses ao Canadá. Apesar de estarmos em Ano Novo, prestarei homenagem a vidas velhas – aquelas que pela primeira vez pisaram solo canadiano -, e às gerações que se seguiram.

Foi por mar que vieram, cavalgando a espuma da esperança, na crista das ondas que o barco movido a fome atravessava, como se rompesse a bolsa de águas de um futuro pronto a nascer. Durante a viagem, vomitaram-se muitas saudades, de cada vez que o balanço do navio desafiava o equilíbrio dos afetos deixados, e provocava enjoos de memórias desfocadas.

Foi a fome que os fez embarcar. A fome verdadeira, aquela que é feita de estômagos a roncar vazios, por nada terem levado à boca; a fome do tão pouco que havia (quando havia) para repartir por muitos, gesto que desencadeava outras e novas fomes. A fome do mundo por conhecer, que estaria para além do monte que sempre servira de linha do horizonte; a fome de partir, porque se estava cansado de viver a miséria repetida, de um dia e mais outros, sempre iguais; a fome de desafiar a ousadia, porque pior do que se estava não podia haver; a fome do saber, negado pelo analfabetismo gerado em silêncios, que a palavra é uma arma perigosa; a fome de dar o salto para o desconhecido, quando o conhecido já não os satisfazia; a fome de dar aos filhos abundâncias com que sonhavam, mas nunca haviam conhecido.

Foram todas estas fomes que se juntaram, a acenar despedidas para os que ficavam, no convés de um barco chamado Satúrnia atracado num cais de partidas.

Por coincidência ou não, e sem que os passageiros soubessem, Saturno é um deus romano, que, com o receio de ser destronado, devorava os filhos à nascença – tal como Portugal matava os seus -, tendo-se salvado apenas um, por via de uma artimanha de sua mulher Reia.

Expulso da montanha sagrada, instalou-se no Capitólio e aí formou uma aldeia a que deu o nome de Satúrnia. Tomando a mitologia como metáfora, diria que o navio Satúrnia mais não foi do que essa primeira aldeia flutuante portuguesa, habitada por Continentais e Ilhéus, que lançou âncora no porto canadiano de Halifax, a 13 maio de 1953.

Se, nesta odisseia, o nome do barco ganha uma carga simbólica, o mesmo se passa com a data da chegada, 13 de maio, tão ligada ao culto mariano.

Maria, segundo os crentes que a invocavam, haveria de ser a mãe protetora para os que haviam deixado a pátria madrasta, na expectativa de um outro colo acolhedor.

Quando se celebrarem os 70 anos, e mantendo o registo da primeira viagem marítima, concluiremos que esta aldeia depressa aprendeu a multiplicar-se numa comunidade pujante, que soube aproveitar as fases lunares para, da maré vazia, atingir a altura da preia-mar.

Aida Batista/MS

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