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“A apropriação cultural é, muitas vezes, não experimentar muitas das desvantagens ancestrais, sistemáticas e contínuas” – Vicki Chartrand

Cultural-Appropriation

 

A cultura de um povo, de uma etnia ou raça encerra em si própria toda uma história que marca, de forma indelével, a maneira de viver e de ser. Mas o ser humano tem essa capacidade de estabelecer relações com os outros, mesmo quando os outros são diferentes, por terem uma base cultural construída em pilares que têm a história que a antecede como principal matéria-prima.

O conceito de apropriação cultural tem na sua génese todos os traumas e dores acumulados de um povo, raça ou etnia oprimido. Este argumento é usado, por exemplo, para justificar que quando quem usa tranças afro é branco, a revolta de quem sabe que as tranças serviam para marcar caminhos de fuga do esclavagismo ou até como forma de armazenar comida para garantir a subsistência. É, não apenas, mas em grande medida, esse remeter para um passado traumático que ecoa em cada manifestação de indignação. A nossa entrevistada, Vicki Chartrand, professora do departamento de Sociologia da Bishop’s University, sublinha este lado de trauma dos oprimidos para justificar o conceito de apropriação cultural e também defende que a tendência que temos de considerar a nossa própria cultura como o padrão normativo pelo qual tudo o resto é medido, ajuda a justificar a indignação e revolta. Relativamente ao caso de Buffy Sainte Marie, Vicki Chartrand não se pronuncia, entre outras razões, por entender que “enquanto colono branco, também não sinto que seja da minha responsabilidade comentar ou policiar as experiências culturais dos outros”. Imagino que tenha sido por isso que esta semana tenhamos tido tanta dificuldade em entrevistar pessoas sobre este assunto – será respeito ou medo de pisar o terreno da ofensa a uma cultura?

FOTO Dr. Vicki ChartrandMilénio Stadium: A cultura de um povo ou de uma raça é algo que está em permanente mudança embora se estruture em pilares que podem ser diferenciadores. Pode essa mudança ser resultado também da assimilação de outras culturas?
Vicki Chartrand: Esta questão faz-me lembrar o trabalho de Haraway, quando a académica argumenta que até a ciência é cultura. Muito do que somos é feito de cultura, muitas vezes definida por outros nomes como política ou ciência, que não conseguimos ver ou tornar visível. No nosso próprio meio cultural, pensamos muitas vezes que os outros povos têm cultura e estabelecemos a nossa própria cultura como padrão normativo pelo qual tudo o resto é medido. Penso que há muito mais que podemos compreender nas confluências da cultura do que provavelmente nos apercebemos.

MS: Ouvi um pensador dizer que a cultura é por natureza promíscua, porque se mistura com outras que a influenciam. Neste contexto, faz sentido falarmos de apropriação cultural?
VC: Se, por um lado, a cultura tem um “hibridismo” ou um fluxo, por outro, há também a necessidade de poder estabelecer limites e definir categorias culturais, especialmente para um povo que tem sido sistematicamente desfavorecido e que sofre todo o tipo de violência e dificuldades contínuas em virtude de pertencer a uma categoria de pessoas definida, muitas vezes cultural, sexual, de género e racialmente. Do meu ponto de vista e da minha compreensão, a apropriação cultural é, muitas vezes, não experimentar muitas dessas desvantagens ancestrais, sistemáticas e contínuas, enquanto beneficia de pertencer às reparações simbólicas e, muitas vezes, tokenísticas, feitas como uma tentativa superficial de reparação.

MS: O caso de Buffy Sainte Marie que se terá assumido como indígena e nessa condição construiu toda uma imagem à volta da sua carreira musical. Como podemos classificar? Será um caso de apropriação cultural, assimilação ou um puro aproveitamento de uma cultura para se promover?
VC: Não posso falar sobre o caso específico de Buffy Sainte Claire. Só tenho um conhecimento superficial desta situação. Enquanto colono branco, também não sinto que seja da minha responsabilidade comentar ou policiar as experiências culturais dos outros ou os parâmetros culturalmente definidos. Embora tenha uma responsabilidade relacional e responsável para com os povos originais desta terra, mantenho o meu trabalho e energia concentrados na construção de relações de colaboração e reciprocidade.

MS: Estas questões que têm sido levantadas sobre apropriação cultural (por exemplo o uso de tranças afro por parte de pessoas brancas) que benefício podem trazer à sociedade? Concretamente, às pessoas que sentem que a sua cultura está a ser apropriada?
VC: Em geral, existem regras sociais e regulamentos formais em todo o lado. Tomar consciência e estabelecer limites é a forma como vivemos em qualquer lugar. Olhando para o colonialismo, embora se trate de relações complexas, podemos ver que continua a existir a crença de que apenas algumas pessoas, predominantemente pessoas brancas de origem europeia, têm acesso ou direito à terra, ao lugar e à cultura, enquanto outras nunca são vistas como pertencendo plenamente ou podendo beneficiar desses mesmos direitos. Há todo o tipo de dinâmicas de poder que existem nas apropriações culturais, para além de simplesmente “roubar as manifestações culturais e estéticas de alguém”. É mais uma questão de quais são as implicações dessas práticas, como parte de uma colonização contínua dos povos?

MS: Este conceito de apropriação está também muito relacionado com um outro – culturas canceladas. Podemos afirmar que hoje é cada vez mais difícil viver em sociedade à custa disso – porque já nem sabemos bem o que podemos ou não dizer ou fazer para não ofender ninguém?
VC: Todos nós estabelecemos normas, códigos de conduta, limites de linguagem, etc., em todos os meios culturais. Não é que já não possamos “dizer ou fazer nada”, é apenas que as normas e os padrões estão a mudar. Algumas pessoas, especialmente aquelas que têm estabelecido as normas de conduta ou que as cumprem à risca, podem sentir-se ameaçadas ou confusas, uma vez que as suas expectativas culturais já não são as mesmas.

Madalena Balça/MS

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