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Panteões Ambulantes

Aida Batista

Por experiência própria, qualquer um de nós sabe que quanto mais mal se diz de alguma coisa, maior é a curiosidade em conhecê-la. Tem acontecido com livros, filmes, peças de teatro, obras arquitetónicas, etc. A polémica suscitada é diretamente proporcional ao público que se manifesta, com a sua presença, para constatar da veracidade dos factos ou se a crítica é adequada à situação em causa.
Até há quem chegue a pensar que, em certas circunstâncias, a maledicência é preparada e intencional, porque acaba por funcionar como publicidade e meio de divulgação da obra em questão, o que em linguagem comercial quer dizer “fazer render o produto”.
Não quero, de forma alguma, insinuar que foi o que se passou recentemente com o nosso Panteão Nacional, cujo estatuto apenas lhe foi atribuído em 1916. Há pouco mais de um século, fazendo bem as contas! Contudo, nunca se falou tanto dele, como nos últimos dias, apesar de, pela voz do povo, ter sido sempre conhecido como “as obras de Santa Engrácia” (nome da igreja que faz parte deste conjunto arquitetónico), expressão idiomática adotada sempre que qualquer obra leva demasiado tempo a ser feita, como foi o caso desta que precisou de três séculos para ser concluída.

O que o motivou este meu texto e lhe deu título, foi precisamente o facto de todo o interesse por este monumento ter nascido de um jantar de encerramento da Web Summit, que se realizou numa das salas do Panteão. Constava do programa, que era público, mas parece que ninguém leu; ou se o leu, aguardava que o jantar se realizasse para pegar nele e o utilizar como arma de arremesso político. E, claro, cavalgou-se durante dias a onda do que era ou não correto, tendo eu aprendido mais sobre este monumento durante os últimos tempos, do que em toda a minha vida, apesar de por lá ter passado algumas vezes, sempre em espreitadelas fugazes à feira da ladra.

Fiquei a saber, por exemplo que, além dos túmulos e cenotáfios, havia várias salas e que as mesmas podiam ser alugadas, segundo uma tabela de preços correspondente às categorias dos eventos a serem celebrados. Consta que esta cimeira alugou o espaço por três mil euros. Baratinho, convenhamos!
Depois de tanto escândalo e abanão de consciências, que condenam a convivência da alegria dos vivos com a sorumbatismo dos mortos, ficou-se a saber que afinal já antes se tinham organizado outros jantares, e nenhum deles levantara algazarra tamanha. Para meu espanto, e sem nunca ter dado por isso, a Editorial Presença até lá fez o lançamento do livro “Harry Potter e a Ordem de Fénix”, com uma festa que decorreu à noite, e a que não faltaram crianças vestidas de feiticeiros, duendes e bruxos; caldeirões com poções mágicas e fumegantes, como se de uma verdadeira noite de Halloween se tratasse.
Eu sou a favor da dessacralização de determinados espaços, desde que os mesmos, com o devido respeito, sejam aproveitados para determinados eventos que não ponham em causa a dignidade do lugar. Ora, tanto quanto sei, as salas onde estas iniciativas se realizam não funcionam num sistema de vasos comunicantes que permitam encontros com quem, por sua glória e honra (igualmente discutíveis) merece lá estar sepultado.
Se assim é, e se outros jantares (como a respetiva contabilidade nos diz) lá foram feitos, porquê tanto alarido desta vez? Será caso para dizer que a Web Summit de Lisboa, apesar de reunir a nata da tecnologia de todo o mundo, tem de conviver com a ancestralidade deste atavismo de que nos não conseguimos libertar.
Este, sim, permanece sepultado em muitos de nós – túmulos de panteões ambulantes!

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